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Consciência negra e luta antirracista, por Luiz Henrique Lima

No Brasil, o racismo não se limita às sombras da ignorância. Ele se disfarça de protocolo, de preferência estética, de “perfil de cliente”. Está nos olhares que vigiam, nas portas que não se abrem, nas oportunidades que não chegam. No Dia da Consciência Negra, é preciso mais do que registros protocolares: é necessário escancarar as estruturas que sustentam essa desigualdade secular. Como apontei em artigos anteriores (a exemplo de “Onde se aprende o racismo?” e “Cinquenta tons de racismo”), o preconceito não é inato — ele é ensinado, reproduzido e naturalizado desde a infância. Está nos livros escolares que omitem a história de Zumbi e de outros heróis negros, nos brinquedos que ignoram a diversidade, nas piadas que disfarçam agressões. E está, sobretudo, nas práticas cotidianas que negam dignidade à população negra. A recente pesquisa do Instituto DataRaça, em parceria com o Instituto Akatu, revela um paradoxo cruel: os consumidores negros movimentam cerca de R$ 2 trilhões por ano, mas 34,8% relatam ter sofrido racismo ao consumir. Em lojas, shoppings e supermercados, são frequentemente tratados como suspeitos, subestimados ou invisíveis. Nesses ambientes, o racismo é velado — 72% dos casos são difíceis de comprovar ou denunciar. É o que chamei certa vez de “a caça ao jovem negro”: uma vigilância seletiva que transforma o ato de comprar em um campo minado de humilhações. O atendente que oferece automaticamente o produto mais barato, o segurança que segue o cliente pelos corredores, o gerente que presume que o cliente não pode pagar. Quando ainda não era famoso, o consagrado cantor Djavan foi visto como assaltante ao tentar comprar um piano elétrico em uma loja, sendo humilhado e preso por algumas horas após a polícia ser chamada. Como bem disse Emicida, se você é um jovem negro numa cidade brasileira, “o táxi não para, mas a viatura sim”. Tudo isso revela que o racismo não é apenas um preconceito dissimulado — é uma prática institucionalizada. Mas há resistência. A pesquisa mostra que 37,4% dos entrevistados valorizam marcas com postura antirracista, e 24,6% deixaram de consumir em lojas percebidas como racistas. Isso é consciência negra em ação: é o poder de escolha como ferramenta de transformação. É o consumidor/cidadão que exige respeito, representatividade e reparação. Celebrar o Dia da Consciência Negra é reconhecer que o racismo não é um problema entre negros e racistas — é um problema de toda a sociedade. É entender que o combate ao racismo não se faz apenas com discursos, mas com políticas públicas, educação antirracista, inclusão econômica, representatividade política e justiça social. É lembrar que não basta rejeitar o racismo: é preciso enfrentá-lo com postura antirracista. Cumpre saudar iniciativas de alguns Tribunais de Contas sensíveis a este tema, a exemplo – sem a pretensão de ser exaustivo – dos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Pará. Sem dúvida, os órgãos de controle externo podem contribuir muito. Que o 20 de novembro não seja apenas um feriado no calendário, mas um marco na luta por um Brasil onde a cor da pele não determine como uma pessoa será tratada, desde o parquinho infantil até o estabelecimento comercial ou órgão público. Respeito e dignidade para todos, todos os dias! Luiz Henrique Lima é professor e Vice-presidente de Controle Externo da AUDICON.

A vaga que nunca existiu: Mais de três décadas se passaram desde a promulgação da Carta de 1988. A Bahia ainda deve ao país e a si mesma o cumprimento de um mandamento constitucional básico. O Supremo tem, mais uma vez, a chance de romper o ciclo da omissão

Há silêncios que pesam mais que palavras. E a omissão da Assembleia Legislativa da Bahia em criar o cargo de Auditor no Tribunal de Contas é um desses silêncios que ecoam há décadas, como se a Constituição de 1988 tivesse sido escrita para todos, menos para o Tribunal de Contas do Estado da Bahia. O Supremo Tribunal Federal, mais uma vez, se vê diante de um dilema que não é apenas jurídico, mas também histórico. A Constituição Federal exige que os tribunais de contas tenham Auditores — os chamados Conselheiros Substitutos — para equilibrar a composição dessas cortes, dar-lhes pluralidade e assegurar a simetria com o modelo federal. Mas na Bahia, o assento reservado nunca saiu do papel. O tempo passou. Em 2021, o STF já havia declarado inconstitucional a prática de servidores técnicos substituírem conselheiros, e fixou prazo para a criação do cargo. O prazo se esvaiu. A omissão permaneceu. E agora, diante da morte de um conselheiro, o vazio institucional cobra resposta. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 87, o relator, ministro Dias Toffoli, reconheceu a mora legislativa, mas admitiu uma exceção: permitir ao governador preencher a vaga por livre nomeação. O ministro Flávio Dino, em voto divergente, também abriu espaço para a nomeação, mas apenas depois da aprovação da lei que cria os cargos. Duas leituras, duas portas entreabertas, ambas com o mesmo risco: transformar a exceção em regra, e a regra em letra morta. A Audicon, associação que representa os Auditores, alerta para o perigo iminente: se a vaga destinada a essa categoria for ocupada, ainda que provisoriamente, por indicação política, cria-se um precedente que não se fecha nunca mais. Outros estados poderão se inspirar na omissão baiana, e o que deveria ser transitório se tornará estratégia. O paradoxo é cruel: para suprir a ausência de Auditores, admite-se ignorar a razão pela qual eles deveriam existir. É como remediar o vazio com mais vazio, como se fosse possível consertar um silêncio com outro silêncio. O STF já enfrentou dilemas semelhantes. Em decisões anteriores, preferiu manter cadeiras vazias a permitir que fossem ocupadas por quem não tinha assento reservado pela Constituição. Como bem alertou o saudoso Ministro Sepúlveda Pertence quando do julgamento da ADI 3276/CE: “Ninguém vai morrer se o Tribunal de Contas do Ceará ficar com seis conselheiros. Agora, se Vossa Excelência deixar essa norma transitória, ela nunca se vai exaurir”. Essa firmeza obrigou estados relutantes a cumprir a lei. Foi assim no Ceará. Foi assim no Distrito Federal. Por que não seria assim na Bahia? Se há algo que a história ensina é que omissões, quando aceitas, tendem a se perpetuar. A cadeira destinada aos Auditores no TCE-BA é uma espécie de fantasma constitucional: todos sabem que existe, mas nunca foi ocupada. Agora, diante da oportunidade de corrigir o descompasso, o risco é que se insista em arranjos paliativos, que só adiam a solução e corroem a autoridade da própria Constituição. Mais de três décadas se passaram desde a promulgação da Carta de 1988. A Bahia ainda deve ao país e a si mesma o cumprimento de um mandamento constitucional básico. O Supremo tem, mais uma vez, a chance de romper o ciclo da omissão. A história cobrará se essa chance for desperdiçada. Por João Marcos Fonseca de Melo e Milene Cunha. Publicado no dia 21/08/2025, no Blog do Fausto Macedo, Estadão. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/a-vaga-que-nunca-existiu/ Disponível para download:

Quem matou o Pantanal? – por Luiz Henrique Lima

Quem matou o Pantanal? Essa é uma pergunta que será feita pelos nossos netos e bisnetos ao assistirem documentários sobre o que foi um dos mais belos biomas do planeta, rico em biodiversidade e absolutamente encantador para os que amam a natureza, a flora, os animais. Quem matou? Por que o fizeram? Como permitiram? Imagino a incredulidade, a revolta, a decepção e a tristeza das gerações vindouras, privadas de conhecer, visitar e viver nesse que foi um dos maiores patrimônios naturais que o homem destruiu. A resposta à pergunta talvez encontre paralelo numa das obras mais conhecidas da escritora inglesa Agatha Christie, talvez a mais lida de todos os autores de romances policiais. Trata-se de O Assassinato no Expresso do Oriente, livro de 1934 que mereceu várias adaptações para o cinema e que é considerado um verdadeiro clássico pela engenhosidade e sutileza da trama. Sem querer estragar a surpresa para um futuro leitor, uma das soluções apresentadas pelo detetive Hercule Poirot foi a de que todos os personagens eram suspeitos e todos os suspeitos eram culpados. É muito tentador encontrar um único culpado para a morte do Pantanal. Alguém com fisionomia de vilão e mente de psicopata como o ecocida que despejou de avião toneladas de veneno sobre milhares de hectares. É relativamente simples atribuir o agonizar do ecossistema a uma causa genérica, imperceptível e inimputável como “mudanças climáticas globais”. No entanto, tais respostas, embora parcialmente corretas, são apenas uma fração da verdade. Há uma pluralidade de razões e uma coletividade de culpados, por ações e omissões. Retornando à literatura, recordei-me de Hemingway que, na sua obra sobre a guerra civil espanhola, sentenciou: “Não perguntes por quem dobram os sinos; eles dobram por ti”. Não pergunte quem matou o Pantanal. Quem matou o Pantanal fomos nós. Fomos nós os que ateamos fogos para acelerar o desmate. Fomos nós os que substituímos as pastagens naturais. Fomos nós os que não investimos em saneamento nas cidades das bacias hidrográficas que alimentam o Pantanal. Fomos nós os que “flexibilizamos” a legislação ambiental e licenciamos garimpos e usinas hidrelétricas no entorno e no interior do bioma. Fomos nós os fascinados pelo discurso do crescimento econômico a qualquer custo. Fomos nós os que nos omitimos diante do desmonte dos órgãos ambientais e das unidades de conservação que só existem no papel. Fomos nós os que ignoramos os alertas de cientistas e ambientalistas. Fomos nós os que adiamos providências e medidas preventivas. Fomos nós os que discursamos em favor da transição energética e continuamos subsidiando termelétricas a carvão e planejando megainvestimentos em jazidas de combustível fóssil. Fomos nós os cidadãos que elegemos bancadas do boi, mas somos incapazes de eleger bancadas do bio. Somos nós os que devemos pedir perdão ao Pantanal e aos nossos netos e bisnetos.   Luiz Henrique Lima é Conselheiro certificado e professor.