Licurgo Mourão
Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP); mestre em Direito Econômico pela UFPB; membro da Associação dos Ministros e Conselheiros substitutos dos Tribunais de Contas do Brasil (Audicon); do Instituto Brasileiro de Direito Financeiro (IBDF); e do Instituto Brasileiro de Estudos da Função Pública (IBEFP); conselheiro substituto do Tribunal de Contas de Minas Gerais.
Simone Rodrigues Adami
Analista de Controle Externo desde 1999 e Assessora de Gabinete de Conselheiro substituto do Tribunal de Contas de Minas Gerais; pós-graduada em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes; pós-graduada em Controle Externo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Resumo
Este artigo analisa a concessão de aposentadoria a servidor público efetivo cedido a outro órgão ou Poder para o exercício de cargo em comissão. Considera-se que a cessão não altera a vinculação previdenciária do servidor público cedido, de modo que a contribuição previdenciária e os proventos de aposentadoria devem ser calculados de acordo com a remuneração do cargo de provimento efetivo (art. 40, § 2º, da Constituição da República c/c art. 47 da Lei Complementar Estadual n. 64/2002). O ato de concessão de aposentadoria do servidor público compete aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a suas autarquias e fundações, ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas, consoante a vinculação do cargo de provimento efetivo (art. 38 da Lei Complementar Estadual n. 64/2002 c/c art. 35 do Decreto Estadual n. 42.758/2002). Nenhum Poder pode processar nem conceder aposentadoria em cargo em comissão, pelo RPPS, a servidor efetivo da Administração direta, autárquica ou fundacional, colocado à sua disposição por outro órgão ou Poder (art. 40, § 2º c/c o § 13, da Constituição da República de 1988).
Palavras-chave: Cessão de servidor efetivo. Aposentadoria em cargo em comissão. Regime previdenciário. Contributividade. Equilíbrio financeiro e atuarial.
Introduçãoi
Discute-se na prática administrativa brasileira a possibilidade de órgão ou Poder processar e conceder aposentadoria a servidores efetivos de outros órgãos da Administração Pública direta e indireta do Estado que se encontrem cedidos para o exercício de cargos em comissão de recrutamento amplo.
Reconhecer a possibilidade de servidor efetivo da Administração direta, autárquica ou fundacional de qualquer Poder, que se encontre à disposição de outro órgão ou Poder para o exercício de cargo em comissão de recrutamento amplo, aposentar-se com a respectiva remuneração majorada no cargo em comissão exercido no órgão cessionário traz, indubitavelmente, severos impactos nas contas públicas, neste momento de crise fiscal generalizada.
De início, observa-se que a base normativa utilizada por alguns exegetas em Minas Gerais para admitir a hipótese aventada seriam o caput do art. 40 da Constituição da República e o art. 35 da Lei Estadual n. 21.333, de 26/6/2014, que dispõem acerca de contagem de tempo e de função pública, transcritos in verbis:
Constituição Federal:
Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo
Lei Estadual n. 21.333/14:
Art. 35. A partir da data de publicação desta Lei, fica assegurada aos servidores alcançados pelo art. 4° da Lei n. 10.254, de 20 de julho de 1990, que tenham exercido cargo de provimento em comissão ou função gratificada, nos termos de regulamento, na administração direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo e do Poder Legislativo, a contagem do respectivo tempo de exercício a partir do ingresso no regime jurídico único até 29 de fevereiro de 2004 para a percepção de direitos e vantagens, observados os prazos e parâmetros vigentes no período a que se refere este artigo. (Grifamos)
O ponto nodal centra-se, pois, na plausibilidade jurídica de o órgão ou entidade cessionária ter competência para processar e conceder aposentadoria a servidor efetivo do órgão ou entidade cedente, com os acréscimos pecuniários dela decorrentes, não existentes no órgão de origem.
A título exemplificativo, seria admitir que um servidor aprovado em concurso público para ocupar cargo de provimento efetivo de professor de educação básica em escola estadual, cujos vencimentos efetivos são de R$ 743,24,ii aposente-se no cargo comissionado de recrutamento amplo de assessor parlamentar classe III, exercido na condição de servidor cedido ao Poder Legislativo, cujos vencimentos são de R$ 18.625,03.iii
Há que se ter atenção com a necessária observância ao sistema constitucional vigente da previdência social dos servidores públicos.
Assim, faz-se necessária breve digressão acerca do atual momento de crise generalizada nas finanças públicas dos entes estatais, diante do quadro de dificuldades da seguridade social.
Da situação fiscal do Estado de Minas Gerais
Como amplamente divulgado pela imprensa nacional e vivenciado por cada um dos cidadãos, o Brasil encontra-se em uma grave crise fiscal, difundida por todos os entes federativos – União, Estados e Municípios, com reduzido ou inexistente espaço para investimentos.
O Estado de Minas Gerais não foge a essa realidade fiscal que assola o País. Em 29/12/2016, a Assembleia Legislativa aprovou a Lei n. 22.476, que estima as receitas e fixa as despesas do Orçamento Fiscal do Estado de Minas Gerais e do Orçamento de Investimento das Empresas Controladas pelo Estado para o exercício financeiro de 2017, com a previsão de déficit fiscal. Verifica-se, na mensagem do Governador do Estado que encaminhou o projeto de lei ao Legislativo mineiro, a referência à necessidade de se estabelecerem metas realistas frente ao cenário econômico-fiscal nos próximos anos.
A referida lei estima as receitas em R$ 87,271 bilhões e fixa a despesa em R$ 95,335 bilhões. Quanto ao Orçamento de Investimento das Empresas Controladas pelo Estado, os investimentos foram fixados em R$ 8,317 bilhões. Portanto, a lei orçamentária do Estado de Minas contempla um déficit ante a desproporcionalidade entre os compromissos e as disponibilidades, causando endividamento.
Esse quadro de deterioração das contas públicas se verifica desde exercícios anteriores. Exemplo disso é que, no exercício de 2015, a despesa total com pessoal do Estado de Minas Gerais,iv incluindo, dentre outros, os gastos com inativos e pensionistas, conforme preceitua o caput do art. 18 da LRF, representou 57,32% da receita corrente líquida, obedecendo ao limite máximo (60%), conforme previsto no art. 20, II, da referida lei. Entretanto, esse percentual excedeu os limites prudencial (57%) e de alerta (54%), conforme previsto nos art. 22, parágrafo único, e art. 59, §1º, II, da referida lei.
Conforme dados constantes das contas de Governo daquele exercício (Processo TCEMG n. 977590),v os recursos contabilizados a título de Aportes para Cobertura do Déficit Atuarial do Regime Próprio de Previdência Social – RPPS (alocados ao Fundo Financeiro de Previdência – Funfip, cuja entidade gestora é o Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais – Ipsemg) foram utilizados para pagamento das despesas com inativos e pensionistas, em ofensa às disposições contidas no § 1º do art. 1º da Portaria 746, de 27/12/11, do Ministério da Previdência Social.
Noutras palavras, o Estado classifica os aportes para cobertura de déficit financeiro como aportes para cobertura de déficit atuarial do RPPS, Elemento de Despesa 97. Tais aportes são imediatamente utilizados para pagamento de benefícios (aposentadorias e pensões), utilizando‐se a Fonte de Recurso 58 – Recursos para Cobertura do Déficit Atuarial do RPPS, sob o Identificador de Procedência e Uso 5 – Recursos Recebidos para Benefícios Previstos no art. 39 da Lei Complementar n. 64/02, que institui o Regime Próprio de Previdência e Assistência Social dos Servidores Públicos do Estado.
Segundo o Manual de Demonstrativos Fiscais da STN, os aportes para cobertura de déficit atuarial – não definido por alíquotas de contribuição – não podem ser computados nas despesas de pessoal. Apenas os aportes destinados ao déficit financeiro, que tenham sido utilizados para o pagamento de benefícios pelo RPPS, é que podem ser considerados despesas de pessoal, sendo vedada sua dedução da despesa total de pessoal.
Como o Estado classifica os aportes para cobertura de déficit financeiro como repasses para cobertura de déficit atuarial, eles são deduzidos das despesas de pessoal. Contudo, se tais aportes fossem computados, considerando a real finalidade para a qual foram utilizados, o percentual das despesas com pessoal do Poder Executivo seria elevado de 47,91% para 56,29%, excedendo o limite máximo estabelecido para esse Poder na LRF (art. 20, II, “c”), que é de 49%.vi
Deve-se observar a finalidade precípua dos aportes atuariais, qual seja, o pagamento futuro dos compromissos definidos no plano de benefícios do RPPS, considerando‐se o resultado previdenciário deficitário, após o aporte para cobertura de insuficiência financeira realizada pelo Tesouro.
Diante desse quadro, o estabelecimento de qualquer interpretação que venha a contribuir para o agravamento da situação previdenciária do Estado deve, pois, ser rechaçado.
Em face de um quadro de insuficiência de recursos, a remuneração dos servidores públicos do Poder Executivo estadual está, atualmente, sujeita a escalonamento, o que, por certo, tem causado graves consequências às finanças pessoais de grande parte dos servidores públicos estaduais.
Como atesta o próprio Decreto n. 47.101, de 5/12/2016, que instituiu o Estado de Calamidade Financeira, verifica-se a deterioração do quadro fiscal, em face também de interpretações que permitiram a governos anteriores escoimar das restrições de gastos impingidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal importantes itens de despesas, a exemplo dos gastos com inativos, a teor do art. 18 da LRF.
O Governador do Estado, ao explicar o Decreto que encaminhara à Assembleia Legislativa,vii destacou a gravidade do quadro fiscal de Minas Gerais, sendo o decreto de calamidade uma ação de emergência para tentar evitar o colapso da prestação dos serviços públicos, decorrente do crescimento de despesas para as quais as receitas têm sido insuficientes, dado o severo momento econômico mundial e nacional, o que compromete a capacidade de investimento e a manutenção dos serviços públicos.
Do sistema público de previdência
A complexidade ínsita à crise estrutural da previdenciária brasileira reclama abordagem multidisciplinar, com a análise de aspectos históricos, políticos, jurídicos, sociais, financeiros, fiscais e gerenciais.
O Brasil se encontra, no ano de 2017, na iminência de uma nova reforma da Previdência Social, propulsionada pelo grande déficit previdenciário, com vistas ao alcance do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema pátrio.
A proposta reformista ensejará a sétima alteração do texto constitucional para atingir o mesmo fim de sustentabilidade do sistema previdenciário consignado nas Emendas Constitucionais n. 3/1993, 20/1998, 41/2003, 47/2005, 70/2012 e 88/2015, todas voltadas à tentativa de se estabelecerem critérios rígidos de contributividade com vistas ao equilíbrio financeiro e atuarial dos regimes previdenciários.
Como bem salientou o professor Marcelo Barroso Lima Brito de Campos, a “ausência de contribuição para custeio da aposentadoria dos agentes públicos foi a mola propulsora das reformas constitucionais”.viii
Em perspectiva histórica, a redação original da Constituição da República de 1988 previa, em seu art. 149, parágrafo único, a faculdade de os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituírem contribuição previdenciária para custeio da aposentadoria dos respectivos servidores. Já na Emenda Constitucional n. 3/1993, definiu-se que as aposentadorias e pensões dos servidores federais deveriam ser custeadas com recursos advindos de contribuições dos servidores e da União, mas a operacionalização das regras só se tornou viável com o advento da Lei n. 9.783/1999, revogada pela Lei n. 10.887/2004.
O novo paradigma previdenciário, caracterizado por assegurar o caráter contributivo do regime de previdência, em especial pela exigência do cômputo do tempo de contribuição para fins de aposentadoria, originou-se da reforma de reestruturação do RPPS constante na EC n. 20/1998 e nas Leis n. 9.717/1998 e 9.796/1999.
Promulgou-se, em sequência, a EC n. 41/2003, que estabeleceu novos critérios com vistas à tutela do equilíbrio financeiro e atuarial do RPPS, com a inserção do princípio da solidariedadeix no caput do art. 40 da CR, assim como a instituição das contribuições dos inativos e dos pensionistas para o RPPS, entre outras alterações promovidas pelo constituinte derivado.
Passou-se, dessa forma, à gestão quadripartite do RPPS, financiado pelas contribuições obrigatórias do respectivo ente público, dos servidores ativos, dos inativos e dos pensionistas. Colaciona-se excerto do voto do Ministro Cezar Peluso, relator do acórdão na ADI n. 3105, em que discorreu acerca da EC n. 41/2003, ipsis litteris:
Ditaram essa transmutação do regime previdencial, entre outros fatores político-legislativos, o aumento da expectativa de vida do brasileiro e, consequentemente, do período de percepção do benefício, bem como a preocupação permanente com o dito equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, tudo isso aliado à queda da taxa de natalidade e à diminuição do acesso aos quadros funcionais públicos. Essa equação, de crescente pressão financeira sobre uma estrutura predominantemente solidária e distributiva, conduziria a inexorável desproporção entre servidores em atividade e aposentados, tendendo ao colapso de todo o regime.
[…] o caráter contributivo, o equilíbrio atuarial, a regra de contrapartida e a equidade na repartição dos custos do sistema impedem se exijam ao sujeito passivo valores desarrazoados ou desproporcionais ao benefício por receber […]. (Grifos nossos)
A EC n. 47/2005, por sua vez, visou à adequação da situação jurídica dos servidores públicos com direito a aposentadoria especial ao contexto normativo decorrente das reformas constitucionais previdenciárias pretéritas.
Posteriormente, a EC n. 70/2012 acrescentou norma à EC n. 41/2003 no sentido de estabelecer critérios para o cálculo e a correção dos proventos de aposentadoria por invalidez dos servidores que ingressaram no serviço público até 31 de dezembro de 2003. A EC n. 88/2015, por fim, estendeu para 75 (setenta e cinco) anos o limite de idade para aposentadoria compulsória dos servidores públicos.
Daquilo que se conhece de público do texto da proposta de reforma previdenciária em andamento neste ano de 2017, o escopo central continua sendo a obtenção do equilíbrio financeiro e atuarial dos regimes de previdência social, com maior rigidez nos requisitos concessórios e redução das probabilidades de aposentadoria com proventos exorbitantes.
Mais que nunca, os princípios interpretativos da força normativa e da supremacia constitucional devem nortear o intérprete das normas previdenciárias relativas ao RPPS no sentido de se preservarem a exigência de contributividade e a manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema público de previdência.
Da situação da previdência social em Minas Gerais
A previdência social se tornou, neste início de século, uma das expressões mais dramáticas dos dilemas impostos pelo princípio da solidariedade social, em especial em suas relações com as limitações dos orçamentos públicos. Tal quadro se torna mais evidente, no caso brasileiro, nos regimes próprios de previdência social (RPPS).
Vive-se hoje, em todo o mundo, a crise do Estado social, seja nos modelos que mais longe chegaram na construção do bem-estar, na Europa ocidental, seja naqueles que poucos passos percorreram nesse caminho, como acontece no Brasil. No nosso caso, a atual crise financeira por que passa o País obriga todos à rediscussão das bases do modelo de retribuição dos agentes públicos, incluindo, para o que aqui interessa, a visão que se tem da extensão do regime próprio de previdência social.
Discute-se aqui a possibilidade de servidores efetivos cedidos a outros órgãos estatais terem suas aposentadorias processadas e pagas pelo Poder ou órgão cessionário no qual ocupam cargos de provimento em comissão, percebendo valores superiores àqueles dos cargos aos quais se vinculam em caráter permanente em seus órgãos de origem. Para além dos aspectos estritamente jurídicos – de fundo constitucional e legal – que envolvem a questão, cabem considerações sobre o regime previdenciário dos servidores públicos, à luz do princípio constitucional da solidariedade social.
A solidariedade social está ligada diretamente ao caráter social de nosso Estado de Direito, bem como à dignidade da pessoa humana, núcleo axiológico do sistema constitucional. Trata-se da dimensão intersubjetiva que impõe o reconhecimento de uma “dignidade humana na referência ao outro”, como afirma Peter Häberle.x
É preciso dizer que, no tempo em que vivemos, a solidariedade social assume relevância inafastável como princípio constitucional, no que se refere à compreensão das questões relativas ao regime próprio de previdência social. Nessa seara, cumpre afirmar que o princípio da solidariedade social implica considerar questões obrigatórias, tais como a relação entre a produção de riquezas do País pela população economicamente ativa e os benefícios previdenciários, as relações entre o regime próprio e o regime geral de previdência social, além da solidariedade intergeracional, que impõe levar a sério a sustentabilidade do sistema previdenciário.
Não é por outra razão que as transformações no regime constitucional de previdência dos agentes públicos evoluíram para um regime fundado na contribuição solidária dos beneficiários, a fim de reduzir distorções e privilégios incompatíveis com o nosso tempo.
O art. 40 da Constituição da República dispõe hoje que o regime próprio de previdência social, aplicável aos servidores titulares de cargo efetivo, tem caráter contributivo e solidário. Entre as mudanças operadas na Constituição, no caso de benefícios vinculados ao regime próprio de previdência social, estão, por exemplo, a proibição de contagem de tempo de contribuição ficto (§ 10), a vinculação dos benefícios previdenciários ao cargo efetivo do servidor (§ 2º), cujo valor da remuneração, embora tenha sido desatrelado do valor dos proventos, permanece como teto intransponível.
O Supremo Tribunal Federal tem ratificado a incidência dos princípios da solidariedade e do equilíbrio financeiro e atuarial da previdência social dos servidores públicos, como atestam suas decisões sobre a constitucionalidade da contribuição previdenciária dos inativos, conforme se vê em decisão no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 867.289,xi do Supremo Tribunal Federal.
A preocupação com os reflexos da concretização de direitos sociais, entre eles o direito à previdência social, nas finanças já combalidas, tem levado a conclusões jurídicas até há pouco tempo impensáveis, como restrições em valores de aposentadorias e pensões.
É exemplo de como a insuficiência financeira impõe a contração de prestações decorrentes de direitos sociais a decisão do Tribunal Constitucional de Portugal, que considerou constitucional contribuição extraordinária de solidariedade, com alíquotas crescentes quanto ao valor do benefício e de caráter transitório, aplicada a aposentadorias e pensões públicas acima de 1.350,00 euros, inicialmente (Acórdão n. 187/2013),xii e acima de 1.000,00 euros em um segundo momento (Acórdão n. 572/2014).xiii
Merece também referência especial o necessário questionamento de benefícios a determinadas categorias de agentes públicos que, aos olhos de hoje, mais se parecem com privilégios incompatíveis com a igualdade e a solidariedade social, o que tem gerado a configuração de verdadeiros “abusos adquiridos”, subvertendo o consagrado direito adquirido insculpido no art. 5º, inciso XXXVI, da CR/88. É nesse sentido a lição de João Carlos Loureiro, da Universidade de Coimbra,xiv in verbis:
Os direitos adquiridos, enquadrados em termos de intangibilidade das prestações, convertem-se na armadura da imunização de privilégios que violam vários princípios, tais como a igualdade, a justiça intergeracional e a sustentabilidade. Assim, a ‘sabedoria dos princípios’, portadores de uma inelutável nota axiológica, tem sido subvertida pela indiferença, em termos de valores, de grupos de interesse.
É de suma importância tal advertência, na medida em que o que está em jogo nesta oportunidade é a admissibilidade de quebra de um sistema normativo construído para restaurar, ao menos parcialmente, tais princípios fundantes da seguridade social. Desconsiderar tal quadro geral seria fulminar os valores centrais do sistema constitucional e, como se verá a seguir, subverter regras constitucionais e legais que, de modo explícito e inquestionável, romperam ao menos com alguns dos antigos privilégios que maculavam postulados centrais do princípio da solidariedade social.
Em relação aos gastos com pessoal, pode-se citar o estudo do economista Raul Velloso, nacionalmente reconhecido especialista em finanças públicas,xv em que aponta que a fórmula de cálculo das despesas de pessoal nos Estados, dentro dos gastos totais, estaria mascarado, já que considera toda a receita corrente, como se toda ela estivesse disponível, o que não é verdade. Parte da receita já está comprometida com despesas legais e constitucionais, como saúde e educação. Daí que, em sua conclusão, as despesas com pessoal no Estado de Minas Gerais, utilizando-se a metodologia proposta, que considera mais realista, já teria atingido 110,3% da receita corrente líquida disponível.
Por outro lado, os gastos com previdência social também compõem cenário dramático nas finanças públicas do Estado de Minas Gerais.
Aponta o relatório sobre a macrogestão e contas do Governador do exercício de 2015xvi um déficit de R$ 8,843 bilhões no resultado da previdência social no Estado. Mesmo com a realização de aportes pelo Tesouro Estadual ao Regime Próprio de Previdência Social, no valor de R$ 5,221 bilhões, para cobertura de insuficiências financeiras, ainda permaneceu uma situação deficitária de R$ 3,622 bilhões.
Destacam-se, ainda, notíciasxvii jornalísticas nas quais foram mostradas as principais causas do déficit nas contas do governo do Estado e das dificuldades no pagamento dos salários, atribuídas ao crescimento descontrolado dos gastos com a previdência dos servidores.
Apesar do aumento do resultado primário do Estado, os gastos com o regime de previdência dos servidores públicos foi o único item que apresentou forte deterioração no balanço das contas públicas estaduais entre o primeiro quadrimestre do ano de 2016 e o mesmo período de 2015. O motivo do resultado negativo das contas do governo diz respeito ao déficit previdenciário, que passou de um resultado negativo de R$ 2,830 bilhões no primeiro quadrimestre de 2015 para R$ 4,374 bilhões negativos no mesmo período de 2016.
Tais dados demonstram, à saciedade, a grave situação do regime próprio de previdência social no Estado de Minas Gerais, o que impõe uma interpretação que, para além de manter hígidos os princípios constitucionais incidentes, não permita o agravamento da situação das já combalidas contas previdenciárias.
A tabela a seguir, cujos dados foram extraídos das prestações de contas dos Governadores, relativas aos exercícios de 2012 a 2015,xviii sintetiza a evolução do déficit da previdência no Estado de Minas Gerais, como se demonstra a seguir:
Cobertura de insuficiência financeira ao RPPS pelo Tesouro Estadual (Em R$ bilhões) |
||||||||||
2012 |
2013 |
2014 |
2015 |
|||||||
Insuficiência Financeira |
Déficit Atuarial |
Insuficiência Financeira |
Déficit Atuarial |
Insuficiência Financeira |
Déficit Atuarial |
Insuficiência Financeira |
Déficit Atuarial |
|||
2.524 |
5.441 |
2.563 |
5.191 |
3.632 |
5.718 |
5.221 |
3.622 |
|||
7.965 |
7.754 |
9.350 |
8.843 |
Os dados são incontestáveis e demonstram o contínuo agravamento da questão previdenciária do regime próprio, que já se alonga há algumas décadas, a despeito das inúmeras Emendas à Constituição que, desde 1998, têm alterado o ordenamento constitucional com vistas a conter a crise previdenciária. Em comum, buscaram a solidariedade social, na tentativa de, ao menos, diminuir distorções e privilégios que beneficiam determinadas castas de agentes públicos, em detrimento da grande maioria da população brasileira e, mesmo, da grande massa de servidores públicos.
Quanto à gestão previdenciária dos regimes próprios dos servidores públicos – RPPS, tem-se que está disciplinada no art. 40, § 20, da Constituição da República de 1988, que proíbe a existência de mais de um regime próprio para os servidores titulares de cargos de provimento efetivo e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal, excepcionada a previdência dos militares, com espeque no princípio da igualdade, na medida em que evita a criação de regimes previdenciários específicos para privilegiar determinadas categorias.
A exigência de que cada ente federativo tenha apenas uma unidade gestora do RPPS, por sua vez, visa a uniformizar os procedimentos administrativos e a estabelecer mecanismos de controle em um único órgão.
A Orientação Normativa MPS/SPS n. 02/2009 assim define unidade gestora de regime próprio de previdência, in verbis:
Entidade ou órgão integrante da estrutura da administração pública de cada ente federativo que tenha por finalidade a administração, o gerenciamento e a operacionalização do RPPS, incluindo a arrecadação e gestão de recursos e fundos previdenciários, a concessão, o pagamento e a manutenção dos benefícios.
Nesse viés, no Estado de Minas Gerais, foi instituída como unidade gestora da previdência o Fundo Financeiro de Previdência – Funfip, cujas responsabilidades foram outorgadas pela Lei Complementar Estadual n. 77/2004 e se consubstanciam em arrecadar e gerir os recursos e fundos previdenciários no âmbito do Estado de Minas Gerais. Contudo, não lhe é atribuída a competência para a prática do ato de concessão de aposentadoria dos servidores efetivos mineiros. O Funfip consiste em fundo, de natureza contábil, sem personalidade jurídica, gerido pelo Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais – Ipsemg, consoante se infere das disposições normativas da referida LC n. 77/2004.
Feito o panorama geral da previdência social, munidos das premissas interpretativas e principiológicas da contributividade e centrados no necessário equilíbrio financeiro e atuarial do RPPS, passamos à análise da vinculação previdenciária na hipótese de cessão de servidor público.
Da cessão de servidor público e sua vinculação previdenciária
O regime constitucional da previdência social dos servidores públicos parte de uma premissa inafastável: a aposentadoria dos servidores públicos efetivos está necessariamente vinculada ao cargo efetivo que titularizam. É o que se depreende, por exemplo, do § 2º do art. 40 da Constituição da República, que dispõe:
Art. 40. […]
§ 2º. Os proventos de aposentadoria e as pensões, por ocasião de sua concessão, não poderão exceder a remuneração do respectivo servidor, no cargo efetivo em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão. (Grifamos)
No mesmo sentido é o que se pode extrair também do § 13 do mesmo art. 40, ao dispor o que se transcreve ipsis litteris:
Art. 40 […]
§ 13. Ao servidor ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração, bem como de outro cargo temporário ou de emprego público, aplica-se o regime geral de previdência social. (Grifamos)
Assim é que a aposentadoria do servidor público titular de cargo efetivo, aplicadas as regras de cálculo próprias de sua situação funcional, estará sempre vinculada a esse cargo, independentemente do lugar em que esteja desempenhando suas atividades na época da aposentadoria, ou de estar exercendo cargo em comissão ou função de confiança. Daí que, antes de se perquirir qual órgão será o responsável pelo processamento e pagamento da aposentadoria, é importante ressaltar que o cálculo dos proventos de aposentadoria deverá ser processado tendo como parâmetro o cargo efetivo do servidor e que, por expressa disposição constitucional, tais proventos não poderão exceder a remuneração do servidor no referido cargo.
Na dicção de Celso Antônio Bandeira de Mello,xix cargo efetivo é aquele criado por lei, integrante de carreira ou isolado; a investidura em tal cargo depende de aprovação em concurso público, cuja relação jurídica com o poder público é de índole estatutária, institucional.
Fixada, com clareza, a norma constitucional, passa-se a analisar a possibilidade, em tese, de um órgão ou Poder processar e conceder aposentadoria a servidores ocupantes de cargos efetivos em outro órgão ou Poder da administração direta, autárquica e fundacional de outros entes estatais, que se encontrem cedidos.
O jurista José dos Santos Carvalho Filhoxx assim define cessão de servidores públicos, in verbis:
[…] fato funcional por meio do qual determinada pessoa administrativa ou órgão público cede, sempre em caráter temporário, servidor integrante de seu quadro para atuar em outra pessoa ou órgão, com o objetivo de cooperação entre as administrações e de exercício funcional integrado das atividades administrativas. Trata-se, na verdade, de empréstimo temporário do servidor, numa forma de parceria entre as esferas governamentais. (Grifamos)
Na mesma esteira estão as lições de Antônio Flávio de Oliveira,xxi que conceitua a cessão de servidor público como “o ato pelo qual, temporariamente, um determinado órgão cede servidor do seu quadro para prestar serviço em outra esfera de governo ou órgão, no intuito de colaboração entre as administrações”.
Extraem-se das definições colacionadas dois elementos substanciais do instituto jurídico da cessão: o caráter temporário e o propósito de cooperação no âmbito da Administração Pública.
A cessão não altera a vinculação previdenciária do servidor cedido, na medida em que a respectiva contribuição é calculada sobre a remuneração do cargo efetivo e recolhida junto ao órgão previdenciário ao qual o servidor se vinculou em razão de sua investidura efetiva.
Cabe ao cessionário, no caso em tela, o ônus de pagar a remuneração do cargo comissionado e de efetuar o repasse, com base nos vencimentos do cargo efetivo original, das contribuições do servidor e do ente federativo à unidade gestora do RPPS. Contudo, o ato de aposentação é exclusivo do ente público cedente.
Ao se discutir o conjunto de atribuições de um órgão ou entidade, vale revisitar a teoria dos elementos ou requisitos de validade do ato administrativo, cuja inobservância enseja a ilegalidade do ato e o sujeita, via de regra, a invalidação. Para tanto, valemo-nos dos vícios previstos no art. 2º da Lei da Ação Popular, Lei n. 4.717/65, quais sejam: incompetência, vício de forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos e desvio de finalidade.
Como é cediço, a competência administrativa, segundo Marçal Justen Filho,xxii “é a atribuição normativa da legitimação para a prática de um ato administrativo”. No caso dos servidores públicos, a atribuição para processar e conceder aposentadoria reside na lei que instituiu o respectivo Regime Próprio de Previdência e Assistência Social – RPPS, Lei Complementar do Estado de Minas Gerais n. 64/02. Nela, a competência é estabelecida com clareza, afigurando-se imprescindível sua aplicação, nos termos do seu art. 38, que dispõe, in verbis:
Art. 38. O ato de concessão dos benefícios, à exceção da pensão por morte, caberá aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a suas autarquias e fundações, ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas, por meio de órgão ou unidade próprios, conforme a vinculação do cargo efetivo do segurado, observado disposto nesta lei complementar. (Grifamos)
Consoante se extrai do dispositivo legal em destaque e da doutrina citada, a concessão de aposentadoria ao servidor público estadual cabe, sem dúvidas, ao órgão ou unidade ao qual seu cargo efetivo está vinculado, ou seja, ao quadro de pessoal estabelecido em leis próprias de cada Poder ou órgão constitucional autônomo.
O art. 47 da Lei Complementar n. 64/2002, do Estado de Minas Gerais, em redação alterada pela LC n. 70/2003, também traz importante regramento sobre a competência para a prática de atos administrativos voltados ao estabelecimento da relação jurídico-previdenciária entre o Estado e o servidor público, no caso da cessão de servidores, in litteris:
Art. 47. O servidor público em exercício em órgão ou entidade distintos dos de sua lotação permanecerá vinculado, para fins previdenciários, ao cargo de origem, ficando a contribuição e o valor do benefício limitados à retribuição-base a que faria jus no órgão ou entidade de origem, vedada a incorporação, em sua remuneração ou provento, de qualquer parcela remuneratória decorrente desse exercício.
Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica a servidor da administração direta de qualquer dos Poderes ocupante de cargo de provimento em comissão em outro órgão da administração direta do Poder a que estiver vinculado. (Grifamos)
Também sobre a matéria, o Ministério da Previdência Social editou a Orientação Normativa/MPS n. 02/2009, em seu art. 31, que dispõe, in verbis:
Art. 31. Na hipótese de cessão, licenciamento ou afastamento de servidor, o cálculo da contribuição ao RPPS será feito com base na remuneração do cargo efetivo de que o servidor for titular, observado o disposto nesta subseção. (Grifamos)
Tais enunciados normativos, como se percebe já à primeira vista, guardam compatibilidade com a norma constitucional que impõe a vinculação necessária entre a aposentadoria e o cargo efetivo titularizado pelo servidor.
Cumpre observar que a ressalva prevista no parágrafo único do artigo 47 da Lei Complementar Estadual n. 64/2002, que institui o Regime Próprio de Previdência e Assistência Social dos servidores públicos do Estado de Minas Gerais, não autoriza a possibilidade de que o vínculo previdenciário seja atribuído a Poder distinto daquele ao qual pertence o cargo de origem, aliás, como o faz a própria Constituição da República, como já referido.
Considerando-se os dispositivos citados, não há dúvida de que a competência para a concessão de aposentadoria no âmbito do RPPS dos servidores públicos estaduais cabe ao órgão ou entidade ao qual se vincula o cargo efetivo do servidor, cuja remuneração, inclusive, deverá servir de base para o cálculo da contribuição.
Atribuir ao cessionário, no caso de cessão sem ônus para o cedente, a obrigação de recolhimento da contribuição previdenciária do servidor cedido é pacífico nos tribunais de contas, v.g. na Consulta TCEMG n. 755.504,xxiii in verbis:
[…] o desconto da contribuição devida pelo servidor cedido e a contribuição devida pelo ente de origem são de responsabilidade da entidade cessionária, cabendo a esta última efetuar o repasse daquelas contribuições à unidade gestora do Regime Próprio de Previdência Social do ente federativo cedente.
[…] o termo ou ato de cessão do servidor com ônus para o cessionário deverá prever a responsabilidade deste pelo desconto, recolhimento e repasse das contribuições previdenciárias ao RPPS de origem conforme valores informados mensalmente pelo cedente. (Grifos nossos).
O art. 44 da Lei n. 14.184/02, que cuida do processo administrativo no âmbito da Administração Pública do Estado de Minas Gerais, por exemplo, veda a delegação no caso de matéria da competência exclusiva do órgão ou da autoridade, aliás, como já está assentado há muito na doutrina do Direito Administrativo.xxiv Não sendo o caso de delegação ou avocação, a competência do órgão, atribuída por lei, é inderrogável e improrrogável, consoante a doutrina de José dos Santos Carvalho Filho,xxv in litteris:
[…] a competência não recebe a incidência de figuras normalmente aceitas no campo do direito privado. Por isso, duas são as características de que se reveste. A primeira é a inderrogabilidade: a competência de um órgão não se transfere a outro por acordo entre as partes, ou por assentimento do agente da Administração. Fixada em norma expressa, deve a competência ser rigidamente observada por todos.
A segunda é a improrrogabilidade: a incompetência não se transmuda em competência, ou seja, se um órgão não tem competência para certa função, não poderá vir a tê-la supervenientemente, a menos que a antiga norma definidora seja alterada. (Grifos no original)
Maria Sylvia Zanella Di Pietro assinala,xxvi no mesmo sentido, que a competência, decorrendo sempre de lei, é inderrogável, permitindo-se delegação ou avocação apenas nas hipóteses em que não seja exclusiva. No mesmo sentido é o posicionamento do STF e do STJ, conforme segue:
[…] Quando o poder conferido a um determinado órgão ou entidade é distribuído pelas autoridades que o integram, sob o critério de hierarquia, nenhuma delas, seja a de grau inferior, seja a de grau superior, pode realizar ato válido na esfera de competência da outra, se inexiste lei que autorize a atividade de que se trata. A competência administrativa, sendo um requisito de ordem pública, é intransferível e improrrogável ad nutum do administrador, só podendo ser delegada ou avocada de acordo com a lei regulamentadora da Administração. […]. (STF. MS 21117/DF. Ministro Ilmar Galvão. Tribunal Pleno. Julgamento em 28 maio 1992.)
[…] A competência é elemento do ato que advém diretamente da lei, e porque proveniente desta é intransferível e improrrogável, salvo se a lei dispuser expressamente sobre a possibilidade de delegação ou avocação. […]. (STJ. REsp 724196/RS. Ministro José Delgado. Primeira Turma. Julgamento em 23 out. 2007. Grifamos)
Como se sabe, a aposentadoria do servidor, “pelo fato de extinguir a relação estatutária, provoca situação de vacância dos cargos anteriormente titularizados pelo servidor aposentado”.xxvii Assim, admitir-se que um ato administrativo praticado pelo órgão ou entidade do Poder cessionário, qual seja, a concessão de aposentadoria ao servidor cedido, tenha como consequência a vacância do respectivo cargo efetivo no órgão ou entidade cedente, viola o princípio constitucional da independência dos Poderes, insculpido no art. 2º da CR/88.
Com relação à distinção entre relação estatutária e relação previdenciária, cumpre ressaltar que o entendimento aqui defendido não destoa daquele extraído do voto da Ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal, proferido na ADI n. 3.105‑DF, por ocasião da análise da constitucionalidade da contribuição previdenciária dos inativos, imposta pelo art. 4º da Emenda Constitucional n. 41/03.
Isso porque a Ministra Ellen Gracie, relatora da citada ADI 3.105-DF,xxviii enfatizou que a relação estatutária não se confunde com a relação previdenciária, com o que concordamos. Todavia, sua Excelência ficou vencida no julgamento da ADI n. 3.105-DF, pois, a despeito de defender a distinção entre as relações, entendeu a Ministra que a obrigação de contribuição dos inativos é inconstitucional, ao contrário do que concluiu a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, conforme demonstra a decisão, a seguir citada, in verbis:
O Tribunal, por maioria, julgou improcedente a ação em relação ao caput do artigo 4º da Emenda Constitucional n. 41, de 19 de dezembro de 2003, vencidos a Senhora Ministra Ellen Gracie, Relatora, e os Senhores Ministros Carlos Britto, Marco Aurélio e Celso de Mello. (Grifamos)
Igualmente ocorre no caso em análise. Não discordamos de que a relação previdenciária é autônoma em relação à estatutária. Todavia, essa distinção não permite ignorar o que dispõe a Lei Complementar n. 64/02, norma de viés nitidamente previdenciário e não estatutário. E, para além disso, por óbvio não afasta a incidência do art. 40, § 2º, da Constituição da República.
Outro ponto que merece registro é o art. 35 da Lei Estadual n. 21.333/14. Esse dispositivo aplica-se à função pública a que se refere o art. 4º da Lei Estadual n. 10.254/90 (a que faz remissão o art. 35 da Lei Estadual n. 21.333/14), que não se confunde com cargo público efetivo. Corrobora esse entendimento o fato de o art. 7º prever as condições para que o servidor cujo emprego ou outro vínculo tenha sido transformado em função pública passe a ser detentor de cargo efetivo. Senão vejamos:
Lei 21.333/2014 (Dispõe sobre o Prêmio por Produtividade em Metrologia Legal e Qualidade Industrial de Produtos, institui a Gratificação pelo Desenvolvimento de Atividade de Fiscalização, cria a carreira de Médico Universitário no âmbito da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes – e dá outras providências.)
[…]
Art. 35. A partir da data de publicação desta Lei, fica assegurada aos servidores alcançados pelo art. 4° da Lei n. 10.254, de 20 de julho de 1990, que tenham exercido cargo de provimento em comissão ou função gratificada, nos termos de regulamento, na administração direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo e do Poder Legislativo, a contagem do respectivo tempo de exercício a partir do ingresso no regime jurídico único até 29 de fevereiro de 2004 para a percepção de direitos e vantagens, observados os prazos e parâmetros vigentes no período a que se refere este artigo.
Lei 10.254/1990 (Institui o regime jurídico único do servidor público civil do Estado de Minas Gerais e dá outras providências.)
[…]
Art. 4º – O atual servidor da administração direta, de autarquia ou fundação pública, inclusive aquele admitido mediante convênio com entidade da administração indireta, ocupante de emprego regido pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT –, terá seu emprego transformado em função pública, automaticamente, no dia primeiro do mês subsequente ao de publicação desta Lei.
§ 1º – Aplica-se o disposto neste artigo:
a) ao servidor designado para o Quadro do Magistério, ou com outro vínculo contratual, com natureza de permanência, com o Estado, suas autarquias ou fundações públicas;
b) ao servidor a que se refere o artigo 9º da Lei n. 9.413, de 2 de julho de 1987;
c) (Vetado).
§ 2º – Excluem-se do disposto neste artigo:
a) o empregado de empresa particular;
b) o profissional autônomo;
c) o titular de cargo, função ou emprego em comissão ou de confiança, declarado de livre exoneração ou dispensa, salvo se se tratar:
1. de detentor de outro emprego permanente, caso em que deverá ser esta a situação considerada;
2. (Vetado).
[…]
Art. 7º – O servidor cujo emprego ou outro vínculo tenha sido transformado em função pública, na forma do art. 4º, será efetivado em cargo público correspondente à função de que seja titular, observadas as condições previstas nos §§ 1º e 2º do art. 6º desta Lei, desde que:
I – se estável, em virtude de disposição constitucional, seja aprovado em concurso para fins de efetivação, nos termos do § 1º do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República; e,
[…]. (Grifos nossos)
É de se notar que o art. 35 da Lei Estadual n. 21.333/2014 não guarda consonância com a Emenda à Constituição Estadual n. 57/03, que assegurou a contagem de tempo comissionado para efeito de apostilamento, até 29/2/04, apenas aos servidores ocupantes de cargo de provimento efetivo, não estendendo tal direito aos detentores de função pública.
De mais a mais, a Lei Estadual n. 21.333/14 trata das mais variadas matérias (prêmio de produtividade em metrologia, criação da carreira de médico na Unimontes etc.), enquanto que a Lei Complementar Estadual n. 64/02 institui, como já dito, o Regime Próprio de Previdência e Assistência Social dos Servidores Públicos do Estado de Minas Gerais. Como se sabe, norma geral de hermenêutica estabelece a prevalência de lei específica em face da lei geral, com fulcro na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, Lei n.12.376/2010 (que alterou o Decreto-lei n. 4.657/1942, Lei de Introdução ao Código Civil).
Ainda, afirmar a possibilidade de órgão cessionário processar e conceder aposentadoria a servidor efetivo do órgão cedente, com majoração da remuneração, equivaleria indiretamente a “ressuscitar” a famigerada lei do apostilamento,xxix Lei n. 9.532/1987, em nosso ordenamento jurídico, com seus nefastos efeitos nas finanças públicas estaduais.
Tal situação permitiria ao servidor concursado para um cargo de carreira elementar, por exemplo, de serviços gerais, com baixo grau de exigência de escolaridade, aposentar-se em um cargo em comissão em outro órgão ou poder, de remuneração superior. O apostilamento, embora previsto em lei, já feria os princípios da impessoalidade e da moralidade. Mais gravoso seria agora, com a participação direta do órgão de controle, permitir a repristinação, de modo indireto, da lei ab-rogada, uma vez que não se observa em tal situação o cuidado de delimitar ou estabelecer condições mínimas de tempo de exercício no respectivo cargo em comissão.
Odete Medauarxxx assevera que os servidores temporários ou ocupantes de cargo em comissão que ingressaram antes da Emenda Constitucional Federal n. 20/98 deveriam ter a sua aposentadoria regulada pelo RPPS, exclusivamente no caso de servidores ocupantes de cargo em comissão, situação fática distinta da questão posta nos autos.
Repita-se: o art. 40, § 2º, da Constituição da República, e o art. 47 da Lei Complementar Estadual n. 64/02, que regem o regime próprio de previdência no âmbito do Estado de Minas Gerais, anteriormente citados, vedaram a incorporação de parcela remuneratória decorrente de cargo em comissão exercido por servidor no órgão cessionário para fins de concessão de benefício previdenciário.
Servidores titulares de cargos efetivos em um Poder, que estão cedidos a Poder distintopara exercer cargos em comissão, por óbvio, não se enquadram na lição de Odete Medauar, qual seja, a de ocupantes, exclusivamente, de cargos em comissão.
Mesmo no caso de servidor ocupante, exclusivamente, de cargo em comissão, este não poderia ter a sua aposentadoria regida pelo RPPS porque, após a Emenda Constitucional Federal n. 20/98, tal servidor deve ser vinculado obrigatoriamente ao RGPS, a teor do que prevê o art. 40, § 13, da CR/88.
Há cerca de vinte (20) anos foi pacificado o entendimento segundo o qual, não havendo direito adquirido a regime jurídico de trabalho, ocupantes de cargos comissionados que não possuem vínculo permanente com a administração aposentar-se-ão pelo regime geral, administrado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS. Nesse sentido, é indiscutível o entendimento do Supremo Tribunal Federal, in litteris:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. OCUPANTES DE CARGO COMISSIONADO. EC N. 20/1998. FILIAÇÃO AO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO A REGIME JURÍDICO, INCLUSIVE PREVIDENCIÁRIO. PRECEDENTES. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. É pacífica a jurisprudência desta Corte de que não há direito adquirido a regime jurídico, inclusive o previdenciário, aplicando-se à aposentadoria a norma vigente à época do preenchimento dos requisitos para a sua concessão. 2. In casu, acertada a decisão agravada ao reformar o acórdão recorrido, o qual afirmava a irretroatividade da norma constitucional, visto que tal entendimento é dissonante do que tem afirmado este Tribunal. 3. Agravo regimental DESPROVIDO. (RE 413405 AgR, Rel.: Min. Luiz Fux, DJe 10 mar. 2015.) (Grifos nossos).
Agravo regimental em embargos de divergência em embargos de declaração em agravo regimental em recurso extraordinário. 2. Cargo em comissão. Aposentadoria após a EC 20/98. Vinculação ao Regime Geral da Previdência Social. Inexistência de direito adquirido a regime previdenciário. Precedentes. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 434212 AgR-ED-EDv-AgR, Rel.: Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 22 out. 2015.) (Grifos nossos).
Agravo regimental no recurso extraordinário. Administrativo. Ocupantes de cargo em comissão. Filiação ao Regime Geral de Previdência Social. Advento da EC n. 20/98. Direito adquirido a regime jurídico previdenciário. Inexistência. Precedentes. 1. Os ocupantes de cargo em comissão de forma exclusiva estão sujeitos ao regime geral de previdência social. 2. É pacífica a jurisprudência desta Corte de que não há direito adquirido a regime jurídico, inclusive o previdenciário. 3. Aplica-se à aposentadoria a norma vigente à época do preenchimento dos requisitos para a sua concessão. 4. Agravo regimental não provido (RE 409295 AgR/RS, Rel.: Min. Dias Toffoli. Julgamento: 3 maio 2011, Primeira Turma, Publicação DJe 1º ago. 2011.) (Grifos nossos)
Com relação à contagem recíproca, prevista no § 9º do art. 201 da Constituição da República, entendemos que também não se trata de argumento válido para permitir a aposentadoria de servidores cedidos, haja vista que o aludido dispositivo pressupõe “diversos regimes de previdência social” que se compensarão financeiramente, ao passo que, na situação em exame, o regime previdenciário é único (RPPS), seja para a aposentadoria concedida pelo órgão cedente, seja pelo cessionário.
A existência de fundo único para arcar com os proventos dos servidores estaduais, seja qual for o órgão de origem dos beneficiários, não autoriza a concessão e o processamento de aposentadoria por qualquer órgão/entidade, em desrespeito ao art. 40, § 2º, da Constituição da República, e à Lei Complementar n. 64/02, que, repita-se, vinculam os benefícios previdenciários e o seu processamento ao órgão ao qual está vinculado o cargo efetivo.
Por fim, em consonância com os fundamentos jurídicos expostos, faz-se mister ressaltar que o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da concessão de aposentadoria pelo órgão cessionário a servidor efetivo do órgão cedente, tendo sido imputado no processo originário o ressarcimento integral dos valores irregularmente pagos. Nesse sentido, veja-se excerto do voto do Ministro Luiz Fux, acolhido à unanimidade na sessão plenária de 10/4/2014, no julgamento do Agravo Regimental em Mandado de Segurança n. 27.215/DF:xxxi
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. APOSENTADORIA. ATO CONCESSIVO. ANULAÇÃO PELO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. POSSIBILIDADE. SERVIDOR EFETIVO DO QUADRO DO MUNICÍPIO DE NATAL. CESSÃO AO TJ/RN PARA O EXERCÍCIO DE CARGO EM COMISSÃO. VINCULAÇÃO AO REGIME DE PREVIDÊNCIA DO ÓRGÃO CEDENTE CONSOANTE DISPOSTO NA LEI 9.717/1998. PEDIDO DE EXONERAÇÃO DO CARGO EFETIVO COM A FINALIDADE DE PERCEBER OS PROVENTOS RELATIVOS AO CARGO EM COMISSÃO. APOSENTADORIA CONCEDIDA PELO ORGÃO CESSIONÁRIO. ILEGALIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE. AGRAVO DESPROVIDO.
1. O servidor titular de cargo efetivo vincula-se ao regime de previdência do órgão de origem quando cedido a órgão ou entidade de outro ente da federação.
2. In casu, o ato questionado assentou: “Servidor municipal requisitado para exercer cargo comissionado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Aposentadoria pelo regime próprio dos servidores públicos estaduais. Ato concedido por maioria de votos no TJRN, após exoneração a pedido do cargo exercido no município. Aposentadoria por invalidez. Impossibilidade. O fato de o Tribunal de Contas do Estado estar apreciando a legalidade do ato e de haver ação judicial em andamento não impede o CNJ de atuar e exercer o controle administrativo sobre sua legalidade, desde que não haja expressa manifestação do STF a respeito. Procedimento instaurado a requerimento do Ministério Público estadual. Dado provimento para desconstituir o ato e para que se adotem providências administrativas para o ressarcimento das verbas pagas indevidamente”.
3. Agravo regimental desprovido.
[…]
Quanto ao ato de concessão de aposentadoria, melhor sorte não assiste à ora agravante.
Conforme relatado, a impetrante, que era servidora efetiva do Município de Natal, foi aposentada por invalidez com os proventos do cargo em comissão que ocupava no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte à época de sua inativação. Para tanto, requereu sua exoneração do cargo efetivo que exercia naquela municipalidade.
O Conselho Nacional de Justiça declarou a insubsistência do ato de aposentação, porque flagrantemente contrário a disposições legais e ao texto constitucional, que dispõe expressamente em seu art. 40, § 13, ser o servidor ocupante exclusivamente de cargo em comissão segurado do Regime Geral de Previdência Social, in verbis:
[…]
O CNJ entendeu violadas também: a Lei federal 9.717/1998, a Lei Complementar municipal 42/2002, a Portaria MPAS 4.882/1999 e o Decreto 3.048/1999.
Correto o entendimento do CNJ. O ato que concedeu aposentadoria à impetrante revela-se flagrantemente inconstitucional, ilegal e não pode subsistir.
Isso porque, embora a aposentadoria por invalidez tenha sido concedida em 25/11/2004, quase seis anos após a alteração promovida pela Emenda Constitucional n. 20/1998, que inseriu a disposição que vincula o servidor ocupante exclusivamente de cargo em comissão ao regime geral de previdência social, o Tribunal de Justiça estadual entendeu por ignorar o texto constitucional, baseando-se em decisão proferida em mandado de segurança (MS 9900086570) que determinou o não recolhimento da contribuição previdenciária dos mencionados servidores ao INSS, sob o argumento da inconstitucionalidade do art. 40, § 13, inserido pela EC 20/1998.
[…]
De outra banda, como afirmado alhures, ao tempo em que a impetrante foi cedida para o TJ/RN, era titular de cargo efetivo no Município de Natal, circunstância que a vinculava ao regime previdenciário daquele ente, conforme estabelece a Lei 9.717/1998, no art. 1º – A, assim redigido:
[…]
Verifica-se que essa disposição legal foi solenemente desrespeitada pelo TJ/RN, que entendeu que a cessão da impetrante para exercer cargo em comissão naquela Corte vinculou-a ao regime previdenciário dos servidores do Estado.
Ressalto, nesse passo, que não tem lugar a invocação a direito adquirido ao regime anterior, que permitia ao servidor ocupante exclusivamente de cargo em comissão filiar-se ao regime próprio de previdência dos servidores do ente federado, haja vista o entendimento pacífico firmado nesta Corte no sentido da inexistência de direito adquirido a regime jurídico […]. (Grifamos)
Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RMS 28.874-MG,xxxii decidiu que “eventual direito à incorporação da remuneração correspondente ao cargo comissionado, de modo a garantir sua estabilidade financeira, deve ser exercido perante seu órgão de origem, responsável pela concessão e pelo pagamento de sua aposentadoria”, consoante precedente no RMS 16.794-BA.xxxiii (Grifamos).
Destarte, sob o ângulo das normas que regulam o RPPS, da própria essência do sistema jurídico-previdenciário e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, afigura-se inconcebível que um órgão ou entidade – mantendo uma relação funcional precária e temporária com servidor efetivo vinculado a outra estrutura administrativa de poder diverso – possa avocar para si o processamento e a concessão de sua aposentadoria. Tal hipótese subverte os ordenamentos constitucional e legal, em detrimento ao erário, ao permitir atribuir a tais servidores proventos superiores à remuneração de seus cargos efetivos.
Ainda que o servidor exerça a opção prevista no § 5º do art. 26 da LC Estadual n. 64/2002, não há previsão legal de recomposição, seja pelo servidor, seja pelo Poder Público, da contrapartida patronal sobre referido valor, o que também violaria a expressa determinação constitucional de que o provento de aposentadoria é limitado à última remuneração percebida no cargo efetivo, senão vejamos:
Lei Complementar n. 64/2002
Art. 26 – A remuneração de contribuição é o valor constituído por subsídios, vencimentos, adicionais, gratificações de qualquer natureza, bem como vantagens pecuniárias de caráter permanente, ressalvado o prêmio por produtividade regulamentado em lei, que o segurado perceba em folha de pagamento, na condição de servidor público.
[…]
§ 5º – Mediante opção formal do servidor ocupante de cargo de provimento efetivo, as parcelas remuneratórias percebidas em decorrência de local de trabalho, do exercício de cargo de provimento em comissão ou de função de confiança poderão compor a remuneração de contribuição a que se refere este artigo e, nesse caso, serão incluídas para efeito de cálculo do benefício a ser concedido com fundamento no § 1º do art. 40 da Constituição da República e no art. 2º da Emenda à Constituição da República n. 41, de 19 de dezembro de 2003, respeitada, em qualquer hipótese, a limitação estabelecida no § 2º do art. 40 da Constituição da República. (Grifos nossos)
Considerações finais
A cessão de servidor não tem o condão de alterar uma relação jurídico-previdenciária a ponto de excluir o servidor do quadro funcional do seu órgão de origem, a que pertence por imposição da lei, posto que o cargo efetivo vincula a própria relação previdenciária e, por conseguinte, a vinculação ao RPPS.
Nesse passo, não é demais lembrar, também, o disposto no art. 37, caput, da Constituição Federal, segundo o qual a Administração Pública direta e indireta deve obedecer, dentre outros, aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade. No § 4º do citado dispositivo, estabeleceu o constituinte que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, da forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
Proceder à aposentadoria de servidores, ao arrepio de normas constitucionais proeminentes e exigências legais inafastáveis, configura ato de improbidade administrativa. A Lei n. 8.429/92 assim estabelece, in verbis:
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
I – Facilitar ou concorrer por qualquer forma para a incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei; […]
VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; […]
IX – Ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento; […]
XI – liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular;
XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente;
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições […] (Grifamos).
Assim, de todo o exposto, da firme jurisprudência e das cristalinas lições doutrinárias, é de se concluir que a concessão de aposentadoria a servidores cedidos, além de inconstitucional e ilegal, fere os dispositivos expressos já citados que regem a matéria e configura ato de improbidade administrativa do gestor responsável por permitir enriquecimento ilícito do beneficiário de tal ato, com consequente prejuízo ao erário, o que, por si só, enseja a atuação inibitória das cortes de contas, bem como do Ministério Público.
Não é admitido a nenhum órgão ou Poder, pelo ordenamento jurídico vigente, processar e conceder aposentadoria a servidores efetivos de outros órgãos e Poderes da Administração Pública direta, autárquica e fundacional do Estado (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) que se encontrem cedidos para exercício de cargos em comissão de recrutamento amplo.
i Com contribuições dos analistas de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais Camilo Flávio S. Fonseca, Iasmin Árabe Machado e Josiane Veloso.
ii Disponível em: http://www.transparencia.mg.gov.br/estado-pessoal/remuneracao-dos-servidores/remuneracao-faixa/201703/1/175/603/E/1513652/2218. Acesso em: 2 maio 2017.
iii Disponível em: https://www.almg.gov.br/export/sites/default/acompanhe/prestacao_contas/despesa-com_pessoal/estrutura_de_cargos_e_vencimentos/arquivos/04_tabela_cargos_comissao_recrutamento_amplo.pdf. Acesso em: 2 maio 2017.
iv MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado. Balanço Geral do Estado. Processos TCEMG n. 977590/2015. Relatório Técnico da Coordenadoria de Avaliação da Macrogestão Governamental do Estado. p. 217-219.
v Idem, p. 218.
vi Idem, p. 219.
vii Conf. entrevista coletiva concedida no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, em 5 dez. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/situacao-incontrolavel-diz-pimentel-sobre-calamidade-financeira-em-minas.ghtml. Acesso em: 1º fev. 2017.
viii CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Regime próprio de previdência social dos servidores públicos. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2012. p. 77.
ix O princípio da solidariedade representa, em linhas gerais, pacto intergeracional em que a contribuição dos servidores ativos financia os proventos dos inativos, de maneira a viabilizar o sistema público de previdência no aspecto econômico. O sistema público de previdência deve ser custeado por toda a sociedade, de forma direta e indireta, com o fim de garantir condições de subsistência, de independência e de dignidade aos aposentados e aos pensionistas.
x HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 89-152.
xi BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 867.289. Caráter solidário da contribuição previdenciária dos inativos. Relatora: Ministra Rosa Weber. Acórdão de 18/8/2015, publicado em 1º/9/2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 22 ago. 2016.
xii PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Processos de fiscalização abstracta sucessiva n. 2/2013, 5/2015, 8/2013 e 11/2013. Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha. Acórdão n. 187/2013 de 5/4/2013. Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130187.html. Acesso em: 2 fev. 2017.
xiii PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Processos de fiscalização abstracta sucessiva n. 386/2014 e 389/2014. Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro. Acórdão n. 572/2014 de 30/7/2014. Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140572.html. Acesso em: 2 fev. 2017.
xiv LOUREIRO, João Carlos. Adeus ao estado social? A segurança social entre o crocodilo da economia e a medusa da ideologia dos “direitos adquiridos”. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. p. 118.
xv Vejam-se depoimentos do economista em SALOMÃO, Alexa. Peso dos gastos com pessoal está “mascarado”, diz especialista. O Estado de São Paulo, São Paulo, 21 jun. 2016. Caderno Economia, p. B4.
xvi MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado. Balanço Geral do Estado. Relatório técnico exarado pela Coordenadoria de Fiscalização e Acompanhamento da Macrogestão Estadual – CFAMGE, exercício financeiro de 2015, Processo n. 977.590, p. 231-232.
xvii MOTTA, Felipe; BICALHO, José Antônio. Sem caixa, governo estadual volta a dividir o pagamento dos servidores. Finanças do Estado estão sendo corroídas pela Previdência. Hoje em Dia, Belo Horizonte, 2 jul. 2016. Disponível em: www.hojeemdia.com.br. Acesso em: 3/5/2017.
xviii MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado. Balanço Geral do Estado. Processos n. 886510/2012, 912324/2013, 951454/2014 e 977590/2015. Relatórios Técnicos da Coordenadoria de Avaliação da Macrogestão Governamental do Estado. Disponível em: http://fiscalizandocomtce.tce.mg.gov.br/Paginas/MenuPrincipal. Acesso em: 2 fev. 2017.
xix MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2014. p. 262-263.
xx CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 629.
xxi OLIVEIRA, Antônio Flávio de. Servidor público: remoção, cessão, enquadramento e redistribuição. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005. p. 105.
xxii JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8. ed. rev., ampl. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 358.
xxiii MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado. Cessão de servidor efetivo estadual para o exercício de função de cargo comissionado em órgão federal. Consulta n. 755.504. Consulente: Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Relator: Conselheiro substituto Gilberto Diniz. Sessão Plenária de 10/9/2008.
xxiv MINAS GERAIS. Dispõe o art. 44 da Lei do Estado de Minas Gerais de n. 14.184/02 que “não podem ser objeto de delegação: I – a edição de ato de caráter normativo; II – a decisão de recurso; III – a matéria de competência exclusiva da autoridade delegante”.
xxv CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011. p. 99.
xxvi DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 247.
xxvii CARVALHO FILHO, op. cit., p. 99.
xxviii BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Contribuição previdenciária dos inativos. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3105-DF. Associação Nacional dos Membros do Ministério Público versus Congresso Nacional. Relatora: Ministra Ellen Gracie. Brasília. Publicação no DJ em 18 fev. 2005.
xxix MINAS GERAIS. Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Lei n. 9.532 de 30 de dezembro de 1987. Dispõe sobre a remuneração de cargo de provimento em comissão para fins de apostilamento e aposentadoria. Minas Gerais, Diário do Executivo, Belo Horizonte, 31 dez. 1987. p. 1, Col. 2. Disponível em: <http://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/ completa/completa.html?num=9532&ano=1987&tipo=LEI>. Acesso em: 4 maio 2017. Revogada pela Lei n. 14.683/2003, 31 jul. 2003.
xxx MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 332.
xxxi BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Aposentadoria de servidor municipal cedido para exercício de cargo em comissão em órgão estadual. Agravo Regimental em Mandado de Segurança n. 27.215-DF. Laura Bezerra de Medeiros Pinheiro versus Conselho Nacional de Justiça. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília. Publicação no DJ em 5/5/2014.
xxxii BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Cessão de servidor público para exercício de função comissionada em outro órgão. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 28.874-MG. Vânia Maria Tameirão Andrade e Gouvêa versus Estado de Minas Gerais. Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz. Publicação no DJ em 28/3/2016.
xxxiii BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Cessão de servidor público para exercício de função comissionada em outro órgão. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 16.794-BA. Francisco de Borja Gonçalves Filho versus Presidente do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Publicação no DJ em 8/10/2007.