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Os Comensais da Previdência, por Alexandre Sarquis

Quando li pela primeira vez Machado de Assis, não entendi. Encarei frente a frente, mas não vi o meu rosto. Estava obstruído por um bordado de mil ironias finas e distrações coloridas. Enfim, àquela tenra idade, talvez me faltasse maturidade para investigar “Memórias Póstumas de Brás Cubas” para além do que era indispensável no vestibular da Universidade de Santa Catarina. E de fato poucas lembranças ficaram dessa primeira experiência, mas duas em especial. A primeira: o título de um dos capítulos, uma frase que se acantonou em algum rincão de minha mente. Quando a vi pela primeira vez, me soou um tanto sofisticada, certamente uma figura de linguagem – sagazmente inferira o jovem eu – , mas exagerada, desconjuntada, inadequada para introduzir o quanto seguia no texto. Quando a reli, quase trinta anos depois, surgiu como um choque, pois tudo sempre esteve claro como a alvorada e finalmente consegui experimentar a lição que o mestre tinha tentado da primeira vez, mas que apenas o passar do tempo tratou de ensinar. O nome do título era “O menino é o pai do homem”. Quem diria! Tanto menino, quanto homem – ambos eu mesmo -, pois então: todos esses três eram a mesma pessoa. Hoje esse aforismo me leva a refletir sobre a previdência social. As decisões que adotamos hoje somente produzirão efeitos em uma geração, mas essa próxima geração será, novamente, a nossa mesma, seremos sempre nós, reiterados, cidadãos brasileiros. Agimos como se não fosse, mas o é. Dotamos o Brasil de um sistema político vocacionado a se comportar segundo a máxima de que tudo de relevante se ultima em quatro anos. Nossos políticos e partidos são adestrados por esse horizonte eleitoral, mesmo porque em sua conformidade vicejam ou minguam: só vale o que ocorre no breve ínterim que separa dois pleitos eleitorais. Um estado perigoso de coisas, se concebermos que há um sem-número de atos capazes de trocar bem-estar presente por dificuldades futuras – a juros. Por exemplo, há quem diga que destinar dinheiro à Previdência Social deprime o nível de investimentos. Não consigo reconciliar tal conclusão com o que sei de ciência econômica: acumular ativos garantidores nos planos de custeio é clara e inequivocamente um exemplo do conceito econômico de poupança, uma renúncia do consumo presente em favor de segurança futura. Poupança, de sua vez, arrasta investimentos equivalentes: aumente um e, de lambuja, vem o outro. Poupança pública, é bem verdade, mas poupança. Se o que se deseja afirmar é que o nível geral de poupança é deprimido, talvez porque esse aumento de poupança pública venha às custas de uma redução mais do que proporcional da poupança privada, faz-se necessário provar mais, explicar mais, estudar mais. Essa relação não me parece clara, direta, nem intuitiva. Duvido que a série histórica deponha a favor disso. Ao contrário, fica a impressão de que o que esses teóricos rejeitam não é exatamente o ideário de uma poupança pública, mas dos investimentos que essa renúncia patrocina. Fica a impressão de que o que realmente desejam é outro tipo de “investimento”, mais parecido com gastos comuns e imediatos, que acabam traindo o efeito da poupança originalmente criada. E assim vai-se introduzindo todo tipo de desvio, torniquete e barricada no caminho do Equilíbrio Financeiro e Atuarial e do Custeio Total da Previdência: consignação em folha de empréstimos e outros convênios nos proventos – proventos estes que no passado sempre ensinei tratarem-se de direito fundamental impenhorável; consideração de efeitos financeiros advindos das “gerações futuras” para reduzir o quanto deve ser poupado pela “geração atual” – conceito que já falhou na previdência privada e agora é requentado para a previdência pública; promessa jurídica de retenção desse ou daquele imposto que – calculados a valor presente – autorizariam a conclusão de que não é necessário acumular tanto assim; flutuações e inversões no financiamento da previdência pelas prefeituras – no mais das vezes coincidindo com ano de pleito eleitoral; investimento em instituições financeiras com fluxo de caixa duvidoso – mas conexões políticas certas; reconhecimento – administrativamente ou em juízo – de regras de aposentadoria mais benéficas, com extensões, transições, acúmulos ou majorações de proventos, tudo sem que ao menos se cogite apontar fontes de custeio. É panorama que não escapa à atenção dos Tribunais de Contas do Brasil, entidades responsáveis por aferir se as regras de direito financeiro, administrativo e previdenciário estão sendo observadas. No Tribunal de Contas da União, o Ministro Vital do Rego descreveu a Previdência Social como uma “bomba que não vai parar de explodir”. No Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, o Conselheiro Severiano Constandrade defendeu, conseguiu instalar e agora preside o Projeto Previdência do Setor Público, uma ação conjunta do Instituto Rui Barbosa e da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil. No Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, o Conselheiro Marco Aurélio Bertaiolli determinou auditoria operacional extraordinária para avaliar descontos em folha dos aposentados e pensionistas do Estado e dos Municípios paulistas – algo similar também o Ministro Bruno Dantas exigiu. Precisamos abandonar em definitivo a ideia de que a previdência social é uma boa sorte fugaz, simples benefício sem sacrifício ou uma liberalidade estatal. Ninguém virá ao nosso resgate senão nós mesmos. Enquanto seguimos excessivamente apegados a opiniões, pareceres, portarias e outras interpretações que menosprezam comandos históricos de nossa Constituição Financeira, marchamos ao largo da prova do custeio total e do equilíbrio financeiro e atuarial dos regimes – valores constitucionais desde há muito. Essa situação nos legará uma expansão desenfreada de direitos inconsistentemente inspirados em uma leitura auto absorvida e autista da letra da lei, despreocupada em viver o seu signficado ou de contemplar o seu horizonte. Animamos o status de afilhados de uma “lei pai”, sem nunca aceitarmos verdadeiramente a condição de servidores de uma “lei patrão”. Os comandos constitucionais de responsabilidade financeira e social não devem ficar trancafiados nos asfixiantes cofres da observância formal, sob pena de gozarem de uma juridicidade pálida e insatisfatória, meramente exterior e prejudicialmente distante do fenômeno social. Precisamos pagar… Read more »

Mercado de carbono – inovações e desafios, por Luiz Henrique Lima

A Lei 15.042/2024, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa, representa um marco importante na agenda climática do Brasil. Ao regulamentar o comércio de emissões, o país dá um passo significativo rumo ao cumprimento de compromissos internacionais assumidos no Acordo de Paris, ao mesmo tempo que estabelece um mecanismo econômico eficaz para a transição rumo a uma economia de baixo carbono. A principal inovação da lei está na criação de um mercado regulado de emissões, onde empresas e setores poderão negociar cotas de gases de efeito estufa, dentro de limites estabelecidos por órgãos competentes. Esse sistema, inspirado em modelos internacionais bem-sucedidos, como o da União Europeia, busca precificar o carbono de forma a incentivar a redução de emissões e estimular investimentos em tecnologias mais limpas. Contudo, a implementação do sistema não está isenta de desafios. A definição inicial dos limites de emissões por setor, conhecida como “cap”, exige um equilíbrio delicado. Limites excessivamente rígidos podem sobrecarregar setores estratégicos da economia, enquanto metas pouco ambiciosas comprometem a eficácia do sistema. Além disso, será essencial garantir a integridade ambiental do sistema, estabelecendo mecanismos robustos de monitoramento e fiscalização para evitar fraudes, como o uso indevido de créditos de carbono. Outro ponto de atenção é a necessidade de inclusão social no mercado de carbono. Pequenos produtores e comunidades locais, muitas vezes protagonistas na preservação ambiental, devem ser incorporados como beneficiários potenciais do sistema. Iniciativas que promovam projetos de sequestro de carbono em áreas de reflorestamento e agricultura sustentável podem criar oportunidades significativas para esses grupos, bem como fortalecer a sustentabilidade do sistema. A Lei 15.042/2024 também apresenta um impacto estratégico no plano internacional. O estabelecimento de um sistema nacional de comércio de emissões posiciona o Brasil como protagonista no enfrentamento das mudanças climáticas, potencializando sua capacidade de atrair investimentos estrangeiros e fortalecer a diplomacia ambiental. No entanto, o alinhamento com normas e mercados internacionais será crucial para que o sistema brasileiro opere de forma integrada e competitiva no cenário global. Por fim, o sucesso da lei dependerá de uma governança eficiente, que inclua a capacitação de gestores e dos órgãos de controle interno e externo, a conscientização da sociedade e um compromisso ético por parte do setor empresarial. Como bem demonstrado pelo Manual de Boas Práticas de Governança Corporativa do IBGC, a transparência e a responsabilidade são pilares indispensáveis para a credibilidade de iniciativas inovadoras como essa. Em síntese, a Lei 15.042/2024 pode representar uma nova era na política ambiental brasileira, simbolizando um sólido compromisso com a sustentabilidade ambiental e com o futuro do planeta. Luiz Henrique Lima é Doutor em Planejamento Ambiental e conselheiro independente certificado.

Controle Externo, Acessibilidade, Inclusão e Cidadania, por Luiz Henrique Lima

A acessibilidade transcende a mera adaptação de espaços físicos. Ela é, antes de tudo, um imperativo ético e jurídico que reflete o compromisso de uma sociedade com a dignidade e a igualdade. No Brasil, o controle externo deve desempenhar um papel crucial na promoção da acessibilidade, assegurando que políticas públicas e recursos sejam direcionados para garantir os direitos das pessoas com deficiência. A Constituição de 1988 consolidou a ideia de que o Estado deve atuar como um garantidor de direitos fundamentais, incluindo a promoção da acessibilidade. Sob a égide da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, os Tribunais de Contas têm a missão de monitorar e avaliar a implementação de políticas voltadas à inclusão. No contexto do controle externo, a acessibilidade assume múltiplas dimensões. Primeiramente, há a necessidade de garantir que os próprios órgãos de controle sejam modelos de inclusão. Isso envolve a adaptação arquitetônica de seus prédios, a utilização de tecnologias assistivas em suas plataformas digitais e a capacitação de seus servidores para atender adequadamente pessoas com deficiência. Em segundo lugar, os TCs devem atuar na fiscalização de políticas públicas que assegurem acessibilidade. Afinal, o controle externo é essencial para assegurar o uso eficiente dos recursos públicos. Isso inclui o monitoramento de obras públicas para assegurar a eliminação de barreiras arquitetônicas, bem como a garantia de inclusão nos sistemas educacionais e de saúde. A fiscalização do cumprimento de cotas de emprego para pessoas com deficiência, a exigência de que editais de licitação prevejam normas de acessibilidade e a implementação de indicadores para monitorar a inclusão social são exemplos de como esse papel pode ser exercido de forma efetiva. Outro aspecto relevante é a promoção da acessibilidade digital. Em um mundo cada vez mais conectado, assegurar que os portais públicos sejam navegáveis por pessoas com deficiência é tão fundamental quanto garantir acessibilidade física. Ferramentas como leitores de tela, foco visível e conteúdos em Libras são passos necessários para a inclusão. Ademais, por meio de ações de orientação e capacitação, é possível influenciar gestores a adotar uma postura de inclusão desde a concepção de projetos e políticas públicas. Mediante campanhas de sensibilização é possível e necessário fomentar uma mudança cultural, combatendo atitudes capacitistas e promovendo a valorização da diversidade. O TCU declarou o ano de 2025 como o Ano da Pessoa com Deficiência no Controle Externo Brasileiro. Ao promover a acessibilidade, o controle externo exerce o seu compromisso com a cidadania. É pela acessibilidade que se constrói uma sociedade plenamente democrática, na qual todos têm a oportunidade de contribuir e prosperar. Assim, os Tribunais de Contas tornam-se não apenas guardiões da legalidade, mas também defensores da dignidade humana. Essa é uma luta contínua e essencial. Porque acessibilidade não é privilégio, é direito. E o controle externo tem um papel inalienável na sua garantia. Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT e vice-presidente de Controle Externo da Audicon.

Mulheres e orçamento, por Luiz Henrique Lima

No mês de março celebra-se o Dia Internacional da Mulher. Multiplicam-se os debates e reflexões sobre as lutas e conquistas já alcançadas e sobre a necessidade de aprimorar políticas públicas específicas que assegurem às mulheres condições de exercerem seus direitos individuais, coletivos e sociais. Renovam-se compromissos de governantes com políticas de igualdade de gênero. Desde a Constituição Cidadã de 1988 houve muito progresso. O combate à violência contra a mulher ganhou fôlego a partir da Lei Maria da Penha. Iniciativas de diversidade e inclusão, nos setores público e privado, têm,embora lentamente, proporcionado maior acesso de mulheres a cargos de liderança e reduzido a disparidade na remuneração com os homens.  Todavia, ainda há muitos desafios a enfrentar. A secular cultura patriarcal e machista procura se reinventar, ora sob a máscara de um discurso ideológico conservador que tenta ridicularizar o feminismo, ora sob o manto de uma visão religiosa extremista que defende e justifica a subalternidade feminina na família e na sociedade como expressão de uma suposta vontade divina. É preciso debater e combater essa visão reacionária, tão mais perigosa porque dissimulada. Um dos principais cenários da luta pela igualdade de gênero é o orçamento público. Com efeito, nunca encontraremos alguém dizendo que é contrário, por exemplo, a medidas de prevenção à violência de gênero ou a instalação de Delegacias da Mulher. Isso na teoria e no discurso. Mas temos que verificar – e cobrar – a prática de gestores e legisladores.  Quais os recursos efetivamente destinados nas leis orçamentárias para a implementação das políticas de proteção às mulheres? Sem orçamento, as políticas públicas não saem do papel e das – vá lá – “boas intenções”. Tem mais. Conquistar recursos nas leis orçamentárias não encerra o assunto. A lei orçamentária contém uma “autorização de despesa”, que nem sempre é impositiva. Assim, muitas vezes um determinado projeto é incluído na programação orçamentária, mas, ao longo do exercício, os recursos são contingenciados, isto é, a sua execução fica bloqueada, sendo liberada apenas nos últimos dias de dezembro, quando já não há tempo para a sua aplicação e dessa forma os gestores conseguem “superávits”. Outra situação frequente é quando os recursos são remanejados para outras áreas, por meio de decretos de abertura de créditos suplementares, cuja autorização prévia é sempre generosamente concedida pelo Legislativo Portanto, depois da aprovação das leis, é preciso também acompanhar de perto o processo de execução orçamentária. Em 2024, o Ministério do Planejamento produziu o Relatório “A Mulher no Orçamento”, com informações de grande relevância sobre a execução de programas federais como saúde integral da mulher, autonomia econômica e igualdade no mercado de trabalho e enfrentamento de todas as formas de violência. É necessário que estados e municípios também realizem estudos semelhantes para os seus respectivos orçamentos, assegurando maior transparência e monitoramento pela sociedade quanto ao cumprimento dos compromissos assumidos. Luiz Henrique Lima é professor e vice-presidente de controle externo da AUDICON – Associação Nacional de Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas.

Securitização de recebíveis municipais – cuidados para além daqueles da Lei Complementar 208/2024, por Alexandre Manir Figueiredo Sarquis

O Direito Financeiro é um grande desconhecido no ensino jurídico brasileiro. Sua inclusão no programa do exame nacional (a partir da 38º edição) pouco chamou a atenção da academia, que ainda relega o assunto às disciplinas optativas, se é que as oferecem. Ainda assim, há cátedras estabelecidas de Direito Financeiro, por exemplo, na Universidade de São Paulo e na Universidade Federal do Maranhão, entre outras. Trata-se da disciplina jurídica dos ingressos e das saídas de recursos públicos, do direito do orçamento público, da regulação jurídica do endividamento, do primo irmão do direito tributário – pelo lado das receitas – e do primo irmão do direito das licitações, contratos e convênios – pelo lado das despesas. É também um ramo repleto de peculiaridades que o afeiçoam ao Direito Constitucional, tanto que amiúde é debatido no STF. Ao contrário de outros ramos do direito, em que os objetos de interesse assumem natureza jurídica de mero ato administrativo, tais como o lançamento tributário ou o contrato administrativo, no Direito Financeiro, o principal objeto de interesse adota natureza jurídica de lei propriamente dita: o orçamento público é uma lei ordinária anual. Se as normas que regulassem a produção do orçamento estivessem a ele hierarquicamente equiparadas, isto é, se fossem outras leis ordinárias, restaria a impressão de que as regras seriam compostas conforme se anda, a cada ciclo que se inicia. Assim que um naco do Direito Financeiro consta diretamente na Constituição Federal, enquanto outro naco consta em legislação complementar, a exemplo da LRF e da Lei 4.320/1964 (recebida como lei complementar pela CF/88). A presunção é que leis complementares – diferentemente de leis ordinárias – propiciam maior rigidez, mas esse não tem sido necessariamente o caso no Brasil: desde a Constituição de 1988 promulgamos 156 leis complementares (da 56 de 1988 até a 214 de 2025), grande parte delas regulando algum aspecto do Direito Financeiro, enquanto passaram-se apenas 37 leis orçamentárias. Refletindo sobre esse panorama, conclui-se ser essencial que pressões sazonais e maiorias circunstanciais sejam obtemperadas, pelo texto direto da norma complementar, pela Constituição, pela prática, pela doutrina e pelos julgamentos dos Tribunais de Contas e do Judiciário. Trata-se do grande desafio de conciliar a vontade republicana, vocalizada pelo Poder Legislativo. LEI COMPLEMENTAR 208/2024 Nesse cenário é que veio a luz a Lei Complementar 208/2024, introduzindo o art. 39-A na Lei 4320/1964 (marco dos orçamentos públicos). Nele, fica autorizada a cessão onerosa de direitos tributários e não tributários a pessoas jurídicas ou fundos de investimentos. O projeto iniciou-se pela mão do incansável e estimado Senador José Serra (PLS 204/2016 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125723), e desde logo exibiu uma indisfarçada inspiração na norma paulista (Lei 13723/2009 https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2009/lei-13723-29.09.2009.html) que tem disposição semelhante para viabilizar as cessões à Companhia Paulista de Securitização – CPSEC. É bem verdade que há outras experiências, por exemplo, dos governos dos Estados do Piauí, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, bem como do município de Belo Horizonte (veja o artigo de Edson Ronaldo Nascimento para uma revisão de tais experiências https://www.conjur.com.br/2024-ago-02/a-securitizacao-de-recebiveis-e-a-lc-208-2024/). SECURITIZAÇÃO A lei ficou conhecida pela expressão “securitização”, que é um anglicismo, uma palavra transplantada do inglês, jurisdição em que as securities são o que conhecemos no Brasil como títulos e valores mobiliários. Securitização é, portanto, a transformação de um ou de alguns contratos em outros (geralmente muitos outros), sendo estes últimos considerados valores mobiliários. Estes valores mobiliários gozam de um mercado secundário bem regulado (CVM), o que potencializa sua segurança e volume de operações. A técnica existe desde há muito, mas ganhou certo impulso no mercado de endividamento público com o chamado “Brady Plan”. Por meio dele, contratos gigantescos e não performados de países em desenvolvimento foram trocados por títulos – os bradies – com prazos e valores mais atraentes para os consumidores de instrumentos financeiros habituais, em uma operação garantida pelo World Bank do FMI. Muito rapidamente floresceu o mercado secundário dos bradies o que, por sua vez, atraiu mais credores e mais países devedores – inclusive o Brasil, que inicialmente havia se mostrado reticente. Com isso, os credores originais limitaram sua exposição e devedores reduziram o custo de captação. Foi o típico ganha-ganha que ocorre quando são quebradas barreiras burocráticas, por detrás das quais estavam represados legítimos desejos dos mercados e da administração pública. A técnica contribuiu decisivamente para a solução da crise da dívida externa de muitos países nos anos 80, e da “década perdida” no Brasil. Mas aqui se iniciam os conflitos da securitização com o Direito Financeiro corrente. Isadora Parmigiani de Biasio, estudando as novidades legislativas, já havia alertado para a necessidade de observar as balizas constitucionais (https://www.conjur.com.br/2024-jul-24/securitizacao-das-dividas-ativas-no-mercado-breve-analise-da-lc-no-208-2024/). É necessário conceber como nosso Direito Financeiro acomoda a nova securitização. Por exemplo, o art. 11 da Lei Complementar 148/2014 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp148.htm#art11) é bastante claro ao estabelecer que “é vedada aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a emissão de títulos da dívida pública mobiliária”. A norma existe, pois, no passado, a emissão de valores mobiliários pelos municípios foi acompanhada por altos custos de transação e até mesmo da prática de ilícitos em certos casos, tais como no chamado “escândalo dos precatórios” (https://www.conjur.com.br/2000-dez-06/conheca_decisao_condenatoria_precatorios_sp/). EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL Então, o extraordinário conjunto de vedações ao endividamento dos municípios seria ou não apenas pânico dos burocratas sem real razão de ser? De um lado, é claro que a simples possibilidade de emissão de títulos municipais não conduz inexoravelmente à certeza de que haverá malfeito. Tome, por exemplo, os Estados Unidos, em que o mercado de títulos estaduais e municipais é tão consolidado que há diversos índices de acompanhamento. A conhecida agência Standard and Poor’s dispõe até mesmo de um painel para eles (https://www.spglobal.com/spdji/en/index-family/fixed-income/us-municipal/ ). Estamos falando, entretanto, de um Direito Financeiro muito diferente do nosso. Por lá, os governos subnacionais quebram, e estão sujeitos a recuperação judicial similar àquela das empresas privadas (chapter 9 do U.S. Bankrupcy Code de 1978), bem como podem se comprometer contratualmente à manutenção de certas taxas de cobertura do serviço da dívida pela receita, ou outras cláusulas específicas de default que seriam impensáveis no direito brasileiro…. Read more »

107 anos e contando, por Luiz Henrique Lima

Esta semana completaram-se 107 anos da criação de um dos cargos mais nobres, mais exigentes e mais desconhecidos da administração pública brasileira. Trata-se do cargo de Ministro Substituto do Tribunal de Contas da União, cuja correspondência, na esfera estadual, é Conselheiro Substituto do Tribunal de Contas. O cargo, então denominado Auditor do Tribunal de Contas, foi criado pela Lei 3.454/1918, especificamente no seu artigo 162, inciso XXVII, parágrafo segundo, letra b), com a competência de relatar os processos de contas perante a Câmara de julgamento do TCU, além de substituir os Ministros em suas faltas e impedimentos. A relevância da atuação dos seus ocupantes impôs crescenteprestígio no ordenamento jurídico, ao longo de diversasreformulações legais da atuação dos órgãos de controle, culminando na sua elevação à estatura constitucional em 1988. O título de Auditor origina-se da nomenclatura à épocaempregada para designar certas espécies de magistrados, mas que hoje subsiste apenas, de modo limitado, na Justiça Militar e na Desportiva. Atualmente, o termo auditor identifica o profissional responsável por planejar e executar trabalhos de auditoria e fiscalização, nas esferas pública e privada. Assim, especialmente a partir de 1988, consagrou-se a denominação Ministro ou Conselheiro Substituto. Como dito, trata-se de um dos cargos mais nobres, mais exigentes e mais desconhecidos da administração pública brasileira. A nobreza deriva da elevada responsabilidade atribuída a tais profissionais, que, além de presidirem, relatarem e apresentarem propostas de votos em processos de grande relevância e materialidade envolvendo a gestão de recursos públicas, devem estar permanentementedisponíveis para acumular tais funções com a substituição de ministros e conselheiros, em virtude de ausências, licenças, vacância ou outros afastamentos legais, podendo tais substituições limitar-se a um único processo, no qual ocorra suspeição ou impedimento, ou prolongar-se por vários meses e até anos. A exigência decorre do rigoroso e disputado concurso público obrigatório para alcançar o cargo, com a participação de centenas de candidatos para cada vaga e sucessivas etapas de provas objetivas, discursivas, orais e de títulos, bem como de rígidos filtros de conhecimentos acadêmicos, experiências profissionais anteriores e ficha limpíssima de antecedentes judiciais. Tais concursos exigem uma inigualada completude de saberes, muito além das disciplinas jurídicas, alcançando as ciências econômicas, contábeis, estatísticas e de administração. O desconhecimento, por sua vez, advém em parte do pequeno contingente de integrantes da carreira, sendo três ministros substitutos no TCU e pouco mais de uma centena em todas as demais cortes de contas. Não raro, tal desinformação alimenta situações contraditórias e decisões, em diversas instâncias, que contrariam a estaturae a independência constitucional da magistratura de contas. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal, em sucessivas decisões unânimes, tem fixado uma robusta jurisprudênciade reconhecimento da dignidade deste cargo constitucionale de suas garantias e atribuições. E todos aqueles que examinam o panorama do controle externo brasileiro identificam o extraordinário papel que tem sido desempenhado por tais profissionais, contribuindo para a detecção de fraudes, correção de rumos e melhoria dos resultados das políticas públicas. Sua qualificação acadêmica tem sido determinante para a modernização dos procedimentos de fiscalização e a evolução jurisprudencial dos órgãos de controle, cada vez mais concentrados em atuações preventivas e de orientação aos gestores públicos. Parabéns aos colegas Ministros e Conselheiros Substitutos, em exercício ou aposentados, pelos 107 anos percorridos e pelos próximos!   Luiz Henrique Lima é professor e Vice-presidente de Controle Externo da AUDICON – Associação Nacional de Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas.