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Os Comensais da Previdência, por Alexandre Sarquis
Quando li pela primeira vez Machado de Assis, não entendi. Encarei frente a frente, mas não vi o meu rosto. Estava obstruído por um bordado de mil ironias finas e distrações coloridas. Enfim, àquela tenra idade, talvez me faltasse maturidade para investigar “Memórias Póstumas de Brás Cubas” para além do que era indispensável no vestibular da Universidade de Santa Catarina. E de fato poucas lembranças ficaram dessa primeira experiência, mas duas em especial. A primeira: o título de um dos capítulos, uma frase que se acantonou em algum rincão de minha mente. Quando a vi pela primeira vez, me soou um tanto sofisticada, certamente uma figura de linguagem – sagazmente inferira o jovem eu – , mas exagerada, desconjuntada, inadequada para introduzir o quanto seguia no texto. Quando a reli, quase trinta anos depois, surgiu como um choque, pois tudo sempre esteve claro como a alvorada e finalmente consegui experimentar a lição que o mestre tinha tentado da primeira vez, mas que apenas o passar do tempo tratou de ensinar. O nome do título era “O menino é o pai do homem”. Quem diria! Tanto menino, quanto homem – ambos eu mesmo -, pois então: todos esses três eram a mesma pessoa. Hoje esse aforismo me leva a refletir sobre a previdência social. As decisões que adotamos hoje somente produzirão efeitos em uma geração, mas essa próxima geração será, novamente, a nossa mesma, seremos sempre nós, reiterados, cidadãos brasileiros. Agimos como se não fosse, mas o é. Dotamos o Brasil de um sistema político vocacionado a se comportar segundo a máxima de que tudo de relevante se ultima em quatro anos. Nossos políticos e partidos são adestrados por esse horizonte eleitoral, mesmo porque em sua conformidade vicejam ou minguam: só vale o que ocorre no breve ínterim que separa dois pleitos eleitorais. Um estado perigoso de coisas, se concebermos que há um sem-número de atos capazes de trocar bem-estar presente por dificuldades futuras – a juros. Por exemplo, há quem diga que destinar dinheiro à Previdência Social deprime o nível de investimentos. Não consigo reconciliar tal conclusão com o que sei de ciência econômica: acumular ativos garantidores nos planos de custeio é clara e inequivocamente um exemplo do conceito econômico de poupança, uma renúncia do consumo presente em favor de segurança futura. Poupança, de sua vez, arrasta investimentos equivalentes: aumente um e, de lambuja, vem o outro. Poupança pública, é bem verdade, mas poupança. Se o que se deseja afirmar é que o nível geral de poupança é deprimido, talvez porque esse aumento de poupança pública venha às custas de uma redução mais do que proporcional da poupança privada, faz-se necessário provar mais, explicar mais, estudar mais. Essa relação não me parece clara, direta, nem intuitiva. Duvido que a série histórica deponha a favor disso. Ao contrário, fica a impressão de que o que esses teóricos rejeitam não é exatamente o ideário de uma poupança pública, mas dos investimentos que essa renúncia patrocina. Fica a impressão de que o que realmente desejam é outro tipo de “investimento”, mais parecido com gastos comuns e imediatos, que acabam traindo o efeito da poupança originalmente criada. E assim vai-se introduzindo todo tipo de desvio, torniquete e barricada no caminho do Equilíbrio Financeiro e Atuarial e do Custeio Total da Previdência: consignação em folha de empréstimos e outros convênios nos proventos – proventos estes que no passado sempre ensinei tratarem-se de direito fundamental impenhorável; consideração de efeitos financeiros advindos das “gerações futuras” para reduzir o quanto deve ser poupado pela “geração atual” – conceito que já falhou na previdência privada e agora é requentado para a previdência pública; promessa jurídica de retenção desse ou daquele imposto que – calculados a valor presente – autorizariam a conclusão de que não é necessário acumular tanto assim; flutuações e inversões no financiamento da previdência pelas prefeituras – no mais das vezes coincidindo com ano de pleito eleitoral; investimento em instituições financeiras com fluxo de caixa duvidoso – mas conexões políticas certas; reconhecimento – administrativamente ou em juízo – de regras de aposentadoria mais benéficas, com extensões, transições, acúmulos ou majorações de proventos, tudo sem que ao menos se cogite apontar fontes de custeio. É panorama que não escapa à atenção dos Tribunais de Contas do Brasil, entidades responsáveis por aferir se as regras de direito financeiro, administrativo e previdenciário estão sendo observadas. No Tribunal de Contas da União, o Ministro Vital do Rego descreveu a Previdência Social como uma “bomba que não vai parar de explodir”. No Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, o Conselheiro Severiano Constandrade defendeu, conseguiu instalar e agora preside o Projeto Previdência do Setor Público, uma ação conjunta do Instituto Rui Barbosa e da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil. No Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, o Conselheiro Marco Aurélio Bertaiolli determinou auditoria operacional extraordinária para avaliar descontos em folha dos aposentados e pensionistas do Estado e dos Municípios paulistas – algo similar também o Ministro Bruno Dantas exigiu. Precisamos abandonar em definitivo a ideia de que a previdência social é uma boa sorte fugaz, simples benefício sem sacrifício ou uma liberalidade estatal. Ninguém virá ao nosso resgate senão nós mesmos. Enquanto seguimos excessivamente apegados a opiniões, pareceres, portarias e outras interpretações que menosprezam comandos históricos de nossa Constituição Financeira, marchamos ao largo da prova do custeio total e do equilíbrio financeiro e atuarial dos regimes – valores constitucionais desde há muito. Essa situação nos legará uma expansão desenfreada de direitos inconsistentemente inspirados em uma leitura auto absorvida e autista da letra da lei, despreocupada em viver o seu signficado ou de contemplar o seu horizonte. Animamos o status de afilhados de uma “lei pai”, sem nunca aceitarmos verdadeiramente a condição de servidores de uma “lei patrão”. Os comandos constitucionais de responsabilidade financeira e social não devem ficar trancafiados nos asfixiantes cofres da observância formal, sob pena de gozarem de uma juridicidade pálida e insatisfatória, meramente exterior e prejudicialmente distante do fenômeno social. Precisamos pagar… Read more »
Securitização de recebíveis municipais – cuidados para além daqueles da Lei Complementar 208/2024, por Alexandre Manir Figueiredo Sarquis
O Direito Financeiro é um grande desconhecido no ensino jurídico brasileiro. Sua inclusão no programa do exame nacional (a partir da 38º edição) pouco chamou a atenção da academia, que ainda relega o assunto às disciplinas optativas, se é que as oferecem. Ainda assim, há cátedras estabelecidas de Direito Financeiro, por exemplo, na Universidade de São Paulo e na Universidade Federal do Maranhão, entre outras. Trata-se da disciplina jurídica dos ingressos e das saídas de recursos públicos, do direito do orçamento público, da regulação jurídica do endividamento, do primo irmão do direito tributário – pelo lado das receitas – e do primo irmão do direito das licitações, contratos e convênios – pelo lado das despesas. É também um ramo repleto de peculiaridades que o afeiçoam ao Direito Constitucional, tanto que amiúde é debatido no STF. Ao contrário de outros ramos do direito, em que os objetos de interesse assumem natureza jurídica de mero ato administrativo, tais como o lançamento tributário ou o contrato administrativo, no Direito Financeiro, o principal objeto de interesse adota natureza jurídica de lei propriamente dita: o orçamento público é uma lei ordinária anual. Se as normas que regulassem a produção do orçamento estivessem a ele hierarquicamente equiparadas, isto é, se fossem outras leis ordinárias, restaria a impressão de que as regras seriam compostas conforme se anda, a cada ciclo que se inicia. Assim que um naco do Direito Financeiro consta diretamente na Constituição Federal, enquanto outro naco consta em legislação complementar, a exemplo da LRF e da Lei 4.320/1964 (recebida como lei complementar pela CF/88). A presunção é que leis complementares – diferentemente de leis ordinárias – propiciam maior rigidez, mas esse não tem sido necessariamente o caso no Brasil: desde a Constituição de 1988 promulgamos 156 leis complementares (da 56 de 1988 até a 214 de 2025), grande parte delas regulando algum aspecto do Direito Financeiro, enquanto passaram-se apenas 37 leis orçamentárias. Refletindo sobre esse panorama, conclui-se ser essencial que pressões sazonais e maiorias circunstanciais sejam obtemperadas, pelo texto direto da norma complementar, pela Constituição, pela prática, pela doutrina e pelos julgamentos dos Tribunais de Contas e do Judiciário. Trata-se do grande desafio de conciliar a vontade republicana, vocalizada pelo Poder Legislativo. LEI COMPLEMENTAR 208/2024 Nesse cenário é que veio a luz a Lei Complementar 208/2024, introduzindo o art. 39-A na Lei 4320/1964 (marco dos orçamentos públicos). Nele, fica autorizada a cessão onerosa de direitos tributários e não tributários a pessoas jurídicas ou fundos de investimentos. O projeto iniciou-se pela mão do incansável e estimado Senador José Serra (PLS 204/2016 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125723), e desde logo exibiu uma indisfarçada inspiração na norma paulista (Lei 13723/2009 https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2009/lei-13723-29.09.2009.html) que tem disposição semelhante para viabilizar as cessões à Companhia Paulista de Securitização – CPSEC. É bem verdade que há outras experiências, por exemplo, dos governos dos Estados do Piauí, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, bem como do município de Belo Horizonte (veja o artigo de Edson Ronaldo Nascimento para uma revisão de tais experiências https://www.conjur.com.br/2024-ago-02/a-securitizacao-de-recebiveis-e-a-lc-208-2024/). SECURITIZAÇÃO A lei ficou conhecida pela expressão “securitização”, que é um anglicismo, uma palavra transplantada do inglês, jurisdição em que as securities são o que conhecemos no Brasil como títulos e valores mobiliários. Securitização é, portanto, a transformação de um ou de alguns contratos em outros (geralmente muitos outros), sendo estes últimos considerados valores mobiliários. Estes valores mobiliários gozam de um mercado secundário bem regulado (CVM), o que potencializa sua segurança e volume de operações. A técnica existe desde há muito, mas ganhou certo impulso no mercado de endividamento público com o chamado “Brady Plan”. Por meio dele, contratos gigantescos e não performados de países em desenvolvimento foram trocados por títulos – os bradies – com prazos e valores mais atraentes para os consumidores de instrumentos financeiros habituais, em uma operação garantida pelo World Bank do FMI. Muito rapidamente floresceu o mercado secundário dos bradies o que, por sua vez, atraiu mais credores e mais países devedores – inclusive o Brasil, que inicialmente havia se mostrado reticente. Com isso, os credores originais limitaram sua exposição e devedores reduziram o custo de captação. Foi o típico ganha-ganha que ocorre quando são quebradas barreiras burocráticas, por detrás das quais estavam represados legítimos desejos dos mercados e da administração pública. A técnica contribuiu decisivamente para a solução da crise da dívida externa de muitos países nos anos 80, e da “década perdida” no Brasil. Mas aqui se iniciam os conflitos da securitização com o Direito Financeiro corrente. Isadora Parmigiani de Biasio, estudando as novidades legislativas, já havia alertado para a necessidade de observar as balizas constitucionais (https://www.conjur.com.br/2024-jul-24/securitizacao-das-dividas-ativas-no-mercado-breve-analise-da-lc-no-208-2024/). É necessário conceber como nosso Direito Financeiro acomoda a nova securitização. Por exemplo, o art. 11 da Lei Complementar 148/2014 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp148.htm#art11) é bastante claro ao estabelecer que “é vedada aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a emissão de títulos da dívida pública mobiliária”. A norma existe, pois, no passado, a emissão de valores mobiliários pelos municípios foi acompanhada por altos custos de transação e até mesmo da prática de ilícitos em certos casos, tais como no chamado “escândalo dos precatórios” (https://www.conjur.com.br/2000-dez-06/conheca_decisao_condenatoria_precatorios_sp/). EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL Então, o extraordinário conjunto de vedações ao endividamento dos municípios seria ou não apenas pânico dos burocratas sem real razão de ser? De um lado, é claro que a simples possibilidade de emissão de títulos municipais não conduz inexoravelmente à certeza de que haverá malfeito. Tome, por exemplo, os Estados Unidos, em que o mercado de títulos estaduais e municipais é tão consolidado que há diversos índices de acompanhamento. A conhecida agência Standard and Poor’s dispõe até mesmo de um painel para eles (https://www.spglobal.com/spdji/en/index-family/fixed-income/us-municipal/ ). Estamos falando, entretanto, de um Direito Financeiro muito diferente do nosso. Por lá, os governos subnacionais quebram, e estão sujeitos a recuperação judicial similar àquela das empresas privadas (chapter 9 do U.S. Bankrupcy Code de 1978), bem como podem se comprometer contratualmente à manutenção de certas taxas de cobertura do serviço da dívida pela receita, ou outras cláusulas específicas de default que seriam impensáveis no direito brasileiro…. Read more »