A crise econômica e política que vive o Brasil aumentou o interesse pelos julgamentos das contas públicas pelos Tribunais de Contas, assim como pelas conclusões de seus trabalhos técnicos de fiscalização da gestão governamental. Há, todavia, muita desinformação, gerando expectativas as mais diversas e irreais, em boa medida porque, das instituições republicanas, as Cortes de Contas são as mais desconhecidas e menos estudadas, inclusive no meio acadêmico e no mundo jurídico.
Os TCs não são uma invenção brasileira ou um modismo recente. No Brasil, foram criados em 1890, logo após a instalação da República, inspirados no modelo francês instituído por Napoleão em 1807. Desempenham uma função essencial à democracia que é o controle externo da administração pública. Hoje existem Cortes de Contas em dezenas de nações, inclusive na União Europeia.
É preciso sempre sublinhar que os TCs não julgam pessoas, mas sim contas, ou seja, atos de gestão envolvendo recursos públicos, sob os prismas orçamentário, contábil, financeiro, patrimonial e operacional. Os TCs não julgam crimes ou contravenções penais, nem decidem sobre atos de improbidade administrativa. Tais competências são do Poder Judiciário. Apesar do nome, os Tribunais de Contas não pertencem ao Judiciário. Tampouco são órgãos auxiliares do Poder Legislativo, embora com ele possuam estreita relação de colaboração e complementaridade de atuação.
Na organização estatal, posicionam-se como órgãos autônomos a serviço da sociedade, cujas competências e prerrogativas são expressamente fixadas na Constituição. Fiscalizam todos os poderes e órgãos públicos, não se subordinando a nenhum. Devem zelar não somente pela legalidade, mas também pela legitimidade e economicidade. Não cuidam apenas de aspectos formais, mas da qualidade do gasto público, expressa em indicadores de resultados de políticas públicas.
Os TCs não condenam gestores à prisão, embora possam aplicar sanções de restituição de valores, multas, indisponibilidade de bens, declaração de inidoneidade e inabilitação para o exercício de cargos públicos. Ademais, com base nas informações e análises resultantes de sua atuação fiscalizatória, o Ministério Público promove ações penais que podem conduzir a sentença judicial de prisão do responsável. Outra consequência possível da rejeição das contas é a inelegibilidade do gestor, que passa a ser “ficha-suja”.
Muitos confundem contas de governo e contas de gestão. Nas contas de governo, o TC emite um parecer prévio, de natureza técnica, pela aprovação ou rejeição, mas o julgamento definitivo é do Poder Legislativo. Nas contas de gestão, quem julga é o próprio TC. Sobrepreço num contrato ou fraude numa licitação são analisados nas contas de gestão. Desrespeito aos limites constitucionais de gastos em saúde e educação os aos limites de gastos com pessoal e endividamento são objeto das contas de governo. As contas de governo envolvem a responsabilidade do Chefe do Executivo acerca dos macrorresultados das políticas públicas. As contas de gestão alcançam uma multiplicidade de responsáveis pelas ações setoriais e pontuais da administração. Nem sempre um parecer favorável nas contas de governo corresponde a um julgamento pela regularidade das contas de gestão e vice-versa.
No momento, discute-se a possibilidade do TCU emitir parecer prévio contrário às contas de 2014 da presidente da República em virtude de inúmeras irregularidades apontadas na gestão fiscal. O curioso é que o Congresso Nacional não julga as contas de governo desde 2001. Em tese, a rejeição das contas pelo Poder Legislativo pode fundamentar um processo de impeachment.
Um dos principais obstáculos a uma fiscalização mais efetiva pelos TCs é a invocação, por exemplo, pela Petrobras e pelo BNDES, de um sacrossanto sigilo bancário, fiscal, comercial etc., utilizado como pretexto para negar dados às auditorias. Em Mato Grosso, argumentos semelhantes foram utilizados para negar transparência aos incentivos fiscais concedidos pelo estado. Trata-se de um absurdo já condenado pelo STF, pois não pode haver sigilo na aplicação de recursos ou na renúncia de receitas públicas, porém não são poucas as manobras daqueles que se pretendem imunes ao controle da sociedade.
Outro aspecto é a inexistência de um órgão nacional que normatize e discipline a atuação dos 34 TCs existentes no país, a exemplo do Conselho Nacional de Justiça em relação ao Poder Judiciário. A proposta de criação do Conselho Nacional dos Tribunais de Contas vem sendo debatida há anos, mas sem decisão pelo Congresso. Enquanto isso, não há uma Corregedoria nacional que processe infrações ético-disciplinares de membros dos TCs.
Uma das maiores críticas à atuação dos TCs é o critério previsto para escolha de ministros e conselheiros, que tem gerado diversas indicações polêmicas, em que a avaliação da capacidade técnica do futuro magistrado de contas é sobrepujada pela afiliação a grupos de interesses político-partidários. Questiona-se se tal composição influenciaria decisões, tornando-as menos rigorosas e técnicas. Nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais, 80% dos desembargadores são oriundos da magistratura concursada, que nos TCs corresponde aos conselheiros substitutos. Já nas Cortes de Contas ocorre o inverso, pois a previsão é de que apenas um entre sete conselheiros seja escolhido dentre os conselheiros substitutos concursados, e mesmo assim em diversos TCs ainda não foi efetivada essa solitária presença. Note-se que na Cour des Comptes francesa, que inspirou a criação dos TCs brasileiros, assim como na totalidade dos TCs europeus, a grande maioria dos magistrados tem origem na carreira especializada da magistratura de contas.
Eis alguns importantes debates para o aprimoramento do controle externo brasileiro.
Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT.