Em inúmeros artigos, aulas e palestras e no primeiro capítulo do meu livro Controle Externo abordei a relação entre democracia e controle externo.
Sustento a tese de que o controle externo é uma atividade essencial à democracia. Essencial, no sentido de necessária e indispensável. Na realidade, não há democracia efetiva sem a existência de controle externo das ações governamentais, com autoridade e independência. Da mesma forma, a célebre Declaração de Lima, da Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores – INTOSAI, proclama que o estado de direito e a democracia são premissas essenciais para uma auditoria governamental efetivamente independente.
De fato, ditadores não gostam da possibilidade de ser controlados e, eventualmente, contrariados ou censurados. Na democracia, todo governante, gestor público, parlamentar, magistrado, enfim, todo agente detentor de parcela do poder estatal tem sua atividade sujeita a múltiplos controles. A organização do estado democrático prevê inúmeros mecanismos mediante os quais o poder é controlado e a atuação de seus titulares é limitada. Os eleitos para representar o povo assumem responsabilidades que devem ser controladas, seja pelo próprio povo, seja por instituições do Estado especialmente constituídas para exercer tal controle
Na história humana, embora haja registros de órgãos controladores desde o Egito do século VIII a.C. e mesmo a ideia de uma Corte de Contas independente tendo sido proposta por Aristóteles na obra Política no século IV a.C., foi somente a partir da Revolução Francesa de 1789, com a derrota do absolutismo e o estabelecimento da separação dos poderes estatais, que surgiram as modernas instituições de controle tendo como modelo a Corte de Contas francesa.
Na história constitucional brasileira, a relação entre democracia e controle externo é muito clara. Na Carta imperial, ditada por Dom Pedro I após dissolver a Constituinte, não havia sequer a palavra controle e o art. 99 deixava expresso que o imperador não era sujeito a responsabilidade alguma, seja financeira, política ou criminal. Foi a Constituição republicana de 1891 que instituiu o Tribunal de Contas para verificar a legalidade das contas da receita e da despesa (art. 89). Na ditadura do Estado Novo, as competências e a independência do TCU foram reduzidas pela Carta de 1937. Na redemocratização, a Constituição de 1946 fortaleceu o controle externo. Em 1967, a Constituição imposta pela ditadura militar podou mais uma vez a atuação do Tribunal de Contas. A Constituição Cidadã de 1988, a mais democrática de nossa história, é a que mais fortaleceu e prestigiou a atuação do controle externo.
Hoje, todavia, o meu enfoque será diferente. Refletirei se é constitucional, se é possível e se é necessária uma atuação dos órgãos de controle externo em defesa da democracia.
O caput do art. 70 da Constituição preceitua que o controle externo observará os princípios da legalidade, legitimidade e economicidade na execução das despesas e na arrecadação de receitas.
Na hipótese de um órgão governamental custear uma campanha publicitária cujo conteúdo veicule mensagem de natureza preconceituosa de qualquer espécie, essa despesa será flagrantemente ilegal e ilegítima, pois afronta um dos quatro objetivos fundamentais da República, previstos no art. 3º, bem como o parágrafo primeiro do art. 37, que dispõe sobre a publicidade das ações administrativas. De igual modo, será ilegal e ilegítima se a mensagem contiver pregação antidemocrática visando constranger a atuação de algum dos poderes da República ou o exercício dos direitos fundamentais.
Além do seu conteúdo ter que obedecer a princípios constitucionais, também a veiculação da propaganda governamental deve observar parâmetros republicanos. Por exemplo, a seleção dos veículos que divulgarão as peças publicitárias não pode ser aleatória ou conforme a conveniência política dos governantes, mas estar amparada em pesquisas e dados técnicos comprovados, bem como os valores da execução contratual devem ser divulgados na internet especificando o nome dos veículos e os valores pagos (Lei 12.232/2010: art. 16 e art. 18, par.2º).
E mais: ainda que o seu conteúdo seja adequado, a despesa com publicidade será ilegal e ilegítima se for veiculada em meios de comunicação que propagam desinformação (fake news), preconceitos ou a derrubada do estado democrático.  Para ser claro: a administração pública não pode, por meio de propaganda governamental, financiar blogs e canais no YouTube ou outros meios que façam a sistemática defesa de teses racistas, antidemocráticas ou que combatam os fundamentos, objetivos e princípios da República. Isso se aplica a entidades da administração indireta como a Petrobras, o Banco do Brasil ou os Correios.
Nessas hipóteses, justifica-se a atuação fiscalizatória e sancionatória dos Tribunais de Contas em defesa dos valores democráticos, com amparo nos incisos IV, VIII e IX do art. 71 da Constituição brasileira.
 
Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT.