Alexandre Sarquis*
Getúlio Vargas disse certa vez que o Tribunal de Contas é um armário onde se guardam amigos. É o pensamento de um Presidente de outra época, que não apreciava ser questionado, espezinhou os Tribunais de Contas, reduziu a quantidade de Auditores e zombou de suas decisões. A ideia, no entanto, pode não parecer tão disparata para alguns administradores modernos. Após tantas tentativas de “explodir” o Tribunal de Contas, recentemente tentou-se “implodi-lo” com uma indicação cujo cumprimento dos requisitos constitucionais era questionável. Ainda bem que Augusto Nardes gritou truco, acudindo súplicas do funcionalismo, da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil – Atricon, entre outros.
Não deveria ser assim. É curiosa a antipatia que ocorre em alguns governantes com relação a quem lhe toma as contas. Sugere um ressentimento com as instituições, desgosto com a fiscalização, enfim, quase um fetiche de redução da República. O músculo cardíaco da República é o prestar e o tomar contas. Não fosse esse cio, eleitores seriam senhores por apenas um dia, subordinados pela servidão em todos os demais. Se o Legislativo decreta uma Lei e o Judiciário condena quem não a observa – inclusive a própria Administração, nada mais estão a fazer do que tomar contas em um esquema em que as autonomias são fracionárias. Tomar contas é entregar o poder ao seu único e legítimo titular.
A crise de representatividade do Legislativo e o ideal de liberdade gerencial do Executivo não são temáticas modernas, muito pelo contrário. A época de Vargas foi assim. O governo militar também. Duas épocas em que as importantes contribuições feitas foram obliteradas pelos grosseiros erros subsequentemente cometidos, erros que seriam evitados com facilidade pela regular operação de instituições que se encontravam absorvidas na luta por espaço.
A verdade é que hoje há um taciturno cerco ao controle: transige-se com a Lei de Responsabilidade Fiscal; insere-se a qualificação de “ato doloso de improbidade administrativa” como requisito na Lei da Ficha Limpa; supervaloriza-se o controle interno – vendendo-o como melhor ou mais moderno que o Controle Externo; ignora-se solenemente projetos de aperfeiçoamento do Sistema de Tribunais de Contas, como o Conselho Nacional dos Tribunais de Contas – CNTC, e a Lei Nacional do Processo de Contas; encaminha-se uma Lei Anticorrupção que exclui sem cerimônia os Tribunais de Contas; engaveta-se o Projeto de Lei que permitiria ao Tribunal de Contas pedir a quebra de sigilo bancário e fiscal de administradores públicos (PLP 13/1995). Assaltos maliciosos como o “leg kick” do MMA: dissimulam a ofensiva e, na finta, minam o sustentáculo.
Aquele que reclama de excesso do órgão de controle, porque parou a licitação ou suspendeu o contrato, deve ter em mente que isso somente lhe foi possível por constatar infração normativa – gravíssima no mais das vezes. A reclamação não se dirige simplesmente a quem adjudica o direito, estão reclamando do próprio direito. Levantam o dedo para o Legislativo e lhe pedem que fale mais baixo, que fiscalize com leveza.
Para analisar uma iniciativa: a revisão do estatuto das licitações.
Muito bem vinda a iniciativa do Senado que constituiu Comissão Especial para tratar da matéria (CTLICON). O texto criado pela Comissão valoriza o pregão, os lances, a fase única para recursos, institui cadastro nacional de inadimplentes mantido pelo TCU, regula a consulta prévia, reforça a observância da exclusiva ordem cronológica dos pagamentos, enfim, para fazer justiça seria necessário transcrevê-lo aqui (PLS 559/2013).
Também é de grande sensatez o caput do novo art. 93 que consagra o “periculum in mora inverso” como princípio geral da cautelar, mas o seu parágrafo terceiro abriga mais um golpe ao Controle Externo. Isso porque prevê afastamento da fiscalização do Tribunal de Contas nas licitações. Outro ponto da mesma vocação é a demasiada permissividade no uso do regime de contratação integrada. A grande incerteza que ainda cerca o anteprojeto de engenharia, ainda mais quando passar a ser utilizado por uma variedade de órgãos e entidades com estruturas administrativas reduzidas, pode subtrair dos Tribunais de Contas o clássico argumento segundo o qual deve a Administração planejar. Se muitas licitações estão sendo paralisadas, acredito que seria interessante ouvir os Tribunais de Contas Estaduais.
Nada obstante, a Comissão promoveu discussão densa, detida, necessária e incontornável, conduzida brilhante e democraticamente no fórum adequado. Não foi apenas um lustro em texto empacotado alhures.
Esta parcimônia é contrastada, por exemplo, com a precipitada extensão do RDC para todos os entes realizada em projeto de conversão de medida provisória (CN MPV 630/2013), quase uma chave de técnica legislativa. Embora grandes ideias estejam encerradas no RDC, não creio que ele tenha sido satisfatoriamente testado nos Estados e Municípios ainda. Suas estatísticas estão infladas e enviesadas pelo objeto mais contratado: a reforma dos aeroportos.
Pergunto: o que acelerou a construção dos aeroportos foi a opção pelo RDC ou foi a ostensiva publicidade do andamento das obras, a canalização de atenção e de recursos, o constrangimento de ver os brasileiros utilizando infraestrutura embaraçada, os olhos vigilantes de poderosos e da gente simples que faz uso semanal das obras em andamento?
Imagino que tenha sido mais este que aquele motivo. Imagino que foi a governança, a transparência e o controle social que aceleraram as execuções dos aeroportos, contratadas com o RDC. Enfim, se a pretexto de se acelerar a solução das urgentes questões de Estado, limitarem o controle externo, prescrevendo situações em que ele não poderá ocorrer, ou sabotam-no, conduzindo pessoa que não é boa para a carreira, estão jogando fora o bebê com a água do banho. Certamente o Senado Federal não vai tolerar que isto ocorra.
*Alexandre Manir Figueiredo Sarquis é Conselheiro Fiscal da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil – Atricon.