LRF em quarentena
Quem acompanha o noticiário relativo aos impactos da pandemia do COVID-19 na administração pública, especialmente em relação às normas de direito financeiro e administrativo e aos procedimentos de gestão orçamentária, contábil e fiscal, pode estar tendo a impressão que a  Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF foi mais uma vítima fatal do novo coronavírus. Alguns intérpretes apressados estão propagando a tese de que a situação de gravíssima emergência, o reconhecimento do estado de calamidade pública e a necessidade de adoção de múltiplas medidas urgentes pelos gestores, como a aquisição de equipamentos hospitalares e kits de testagem ou a contratação provisória de pessoal para atuar nas unidades de saúde, justificam o completo abandono das normas de direito público, a exemplo da responsabilidade fiscal.
Não é bem assim. Para usar uma metáfora de fácil compreensão nos dias de hoje, alguns dispositivos da LRF foram colocados em quarentena, mas nenhum deles está na UTI ou foi revogado.
Primeiramente, é preciso destacar que, há 20 anos, quando foi sancionada em maio de 2000, a própria LRF previu que na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, para a União, ou pelas Assembleias Legislativas, para Estados e Municípios, serão suspensas, enquanto perdurar a situação, a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos artigos 23  e 31, ou seja, a recondução da despesa total com pessoal e da dívida consolidada aos limites legais. Isso consta do seu artigo 65. Ademais, em caso de crescimento real baixo ou negativo do Produto Interno Bruto (PIB) por período igual ou superior a quatro trimestres, tais prazos serão duplicados (artigo 66).
O Congresso Nacional reconheceu a calamidade pública no Brasil por meio do Decreto Legislativo 6/2020 e a Assembleia Legislativa de Mato Grosso fez o mesmo em relação ao estado por meio da Resolução 6.728/2020. Embora a norma estadual faça referência apenas à administração pública estadual, entendo que os seus efeitos também se aplicam a todos os municípios mato-grossenses, sem a necessidade de edição de outro diploma específico.
Ademais, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática e cautelar nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 6.357, concedeu Interpretação conforme a Constituição da República, aos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF e 114, caput, in fine e parágrafo 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020, para, durante a emergência em Saúde Pública de importância nacional e o estado de calamidade pública decorrente de COVID-19, afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias exclusivamente em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de COVID-19.
Referidos artigos da LRF estipulam regras relacionadas a: a) concessão ou ampliação de incentivo tributário e renúncia de receitas; b) criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa; c) aumento de despesas de caráter continuado; e d) criação, majoração e extensão de benefício relativo à seguridade social.
Em sua decisão, o ministro destacou que a interpretação da LRF conforme a Constituição não se aplica apenas à União, mas alcança todos os entes federativos que, nos termos constitucionais e legais, tenham decretado estado de calamidade pública decorrente da pandemia de COVID-19.
O resumo da história é que o bom senso deve prevalecer. Em tempos de pandemia, o equilíbrio fiscal perde protagonismo diante da urgência em proteger vidas humanas. Todavia, a calamidade pública jamais pode ser pretexto para violar os princípios gerais da administração pública – legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade (transparência) e eficiência – ou aqueles vinculados à gestão dos recursos públicos – legalidade, legitimidade e economicidade.
Como muitos de nós, após a quarentena imposta pelo coronavírus, a LRF ressurgirá em sua plenitude e a prudência fiscal e o equilíbrio orçamentário serão importantes bússolas para a recuperação econômica e social do país.
 
Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT.