Segundo a doutrina majoritária, o Tribunal de Contas julga, mas tal julgamento não é senão um dizer da Constituição, uma expressão acidental do art. 71, II que rapidamente se embota em nua nominalidade tão logo despida do sentido que, alhures, lhe é reconhecido. O Tribunal de Contas é dotado de jurisdição (art. 73), mas a locução, ali, manifesta algo diverso. Seus membros têm por função a judicatura (art. 73, §4º), só que não. Apreciam a legalidade de atos (art. 71, III, VIII e IX), mas isso, novamente, não o é. Suas decisões constituem um título executivo (art. 71, §3º) de prosaica palidez, incapaz, por si só, de rivalizar o processo de cognição. Seu regimento guarda atenção às normas de processo e garantias processuais das partes (art. 73 c/c art. 96, I, “a”), uma extravagância desnecessária e ociosa.

Como essas, outras heterotopias. Ah, como é sutil a interpretação! Inúmeros são os dizeres a superar na investigação pelo verdadeiro sentido da Constituição. Para mim, entretanto, nada sacode a impressão de que há excursão que se desprende do esquadro pretendido pelo substrato semântico. De qualquer forma, assim vai se consolidando a jurisprudência, como Conrado Tristão, em invencível maestria, esclarece (“TCU e o mito da ‘jurisdição de contas’”).

Ocorrem-me duas perguntas.

A primeira é: por quê? Melhor, talvez, por que tão rapidamente? Há pouco menos de três décadas tínhamos uma instituição em cuja Lei Orgânica, ao capítulo intitulado “do julgamento”, colhia-se até mesmo a possibilidade de ordenar a prisão daqueles que não prestassem contas (DL 199/67 art. 40, II). Desse inconveniente e exagerado vigor de outrora resta, em pronunciada antítese, apenas a remota possibilidade de incurso em ato de improbidade administrativa (Lei 8429/92 art. 11, VI) e mesmo esse comando para prestar contas encontra-se em vias de ser revogado, acaso aprovado o substitutivo do PL 10887/2018, movimento a que já se antecipa a jurisprudência (TSE Resp 0600135-02.2020.6.26.0172).

Pondero o fato de que, após a prova técnica, após parecer do Ministério Público de Contas, após franqueados os meios de impugnação das decisões, após a sustentação oral, após a sessão pública colegiada, enfim, após o longo processo de Contas, emerge um título que é confiado ao próprio vencido para que, de esforços próprios, o execute. Em sendo o mérito de fundo restituído ao juízo do primeiro grau, é natural que novos argumentos, provas e circunstâncias sejam explorados, desta vez em dialética processual entre partes desejosas de desfecho diverso, alienando e minimizando os motivos que originalmente agitaram o Tribunal de Contas.

Idealizar um rearranjo do condomínio estatal em que as autoridades fiscalizadas se declarem satisfeitas com a intromissão do Tribunal de Contas não parece constituir expectativa razoável. De outro giro, confiar em uma percepção popular da conveniência e propriedade de tal limitação do Poder Executivo tampouco parece razoável. A função do fiscal das contas é induzir cuidadosa e parcimoniosa execução de despesa e do endividamento a fim de que se atenham aos objetos e limites escolhidos pela sociedade: uma manifestação da autocontenção burocrático contábil que, convenhamos, para além da difícil compreensão, não seduz tanto quanto a exuberância do gasto propriamente dito.

Talvez escape o fato de que a prerrogativa de tomar contas somente se alcançou após extraordinário avanço civilizatório, que remonta às vitórias da revolução francesa (art. 15 da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão). É a forma de que dispomos para aferir se o administrador atua de forma prudente e de acordo com o que a sociedade dele espera, em consonância com o complexo de postulados financeiros e administrativos. O Tribunal de Contas é um instrumento republicano na busca pela concretização dos direitos fundamentais, propiciando justiça e igualdade.

Mas se é tamanha a resistência à tese da ‘jurisdição de contas’, por que não alimentar a digressão contrária? Quero dizer, poderíamos cogitar se, em verdade, não seria mais favorável ao interesse público justamente que o Tribunal de Contas abandonasse o julgamento de atos em definitivo. Qual o panorama que se desenharia acaso acolhida definitivamente a tese? O que restaria do Tribunal de Contas? Essa é a segunda pergunta que me ocorre.

Cresce em julgados o tom crítico ao enunciado 347 da súmula do STF (“O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”). A falência da tese de jurisdição de contas, por óbvio, imporia a definitiva erosão da legitimidade do enunciado: os atos e leis dos entes fiscalizados não poderiam ser questionadas pelo Tribunal de Contas, a quem não se reconhece nem a arguição de inconstitucionalidade, posto que não figura entre os legitimados para tal.

Mas veja que Leis Orçamentárias são, antes de mais nada, Leis. As destinações mínimas à educação, saúde e previdência, as vedações orçamentárias, as participações de Municípios e Estados nas receitas dos estados e da União, as limitações de endividamento e de gasto com pessoal, de outro lado, são disposições constitucionais. Nesse sentido, a retirada da Carta Política enquanto paradigma apto ao controle da conduta parece abreviar muito do que hoje constitui função do Tribunal. Há ainda diversas outras regras, acerca de funcionalismo, previdência, cargos, empregos e funções e teto remuneratório, todas figurando na Carta Política e, portanto, passariam a estar indisponíveis ao Controle.

Ademais, o que estaria a impedir que, ante o panorama de relativização do dever de prestar contas anteriormente mencionado, os ordenadores de despesa atalhassem sua defesa no Tribunal, alegando, por exemplo: “as contas estão regulares, mas, sobre elas, reservo-me o direito de falar em juízo”?

Talvez deveria o Tribunal se recolher em sua escola de contas. Aliás, nesse intuito foi lançado o art. 173 da nova Lei de Licitações (“Os tribunais de contas deverão, por meio de suas escolas de contas, promover eventos de capacitação para os servidores efetivos e empregados públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei, incluídos cursos presenciais e a distância, redes de aprendizagem, seminários e congressos sobre contratações públicas”).

Nenhuma disposição ilustra com maior clareza o périplo por que passa a Corte de Contas, posto que jurisdição é função peculiar daqueles que falam por último, já a educação, daqueles que falam por primeiro.

Enfim, não há instituição que emerja isenta de deficiências e imperfeições dos rigores da vida. Tais faltas legitimam propostas de avanço que elas e a academia podem e devem formular, tudo em busca da máxima efetividade e cumprimento do que consta na Constituição.

A Constituição é uma coleção de dizeres que, justapostos, adquirem ares de sonho aspirado por uma abnegada esperança em dias melhores. Faz parte dessa utopia o mito de um órgão instigador da contínua melhoria técnica da gestão. Sabe-se lá quantas gerações de paulatinos avanços e pequenos regressos a fé nesse porvir é capaz de resistir. Talvez devêssemos apostar nos mitos.

 

  • Alexandre Manir Figueiredo Sarquis é Conselheiro-Substituto do TCE-SP, doutorando em Direito Financeiro USP, professor da FIPECAFI.