NOTA TÉCNICA nº 01/2018/ATRICON/AUDICON                BRASÍLIA, 10 de abril de 2018

 
 

NOTA TÉCNICA Nº 01/2018

 
 
ASSUNTO: Projeto de Lei nº 7.448/2017, que inclui no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.
 
ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DO BRASIL – ATRICON – e a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MINISTROS E CONSELHEIROS-SUBSTITUTOS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS – AUDICON, pessoas jurídicas de direito privado, entidades de classe de âmbito nacional, com sede em Brasília-DF, vêm, por meio da presente Nota Técnica, diante do encaminhamento do Projeto de Lei nº 7.448/2017 para sanção do Presidente da República, apresentar alguns pontos de reflexão quanto aos dispositivos que, em seu entendimento, devem ser objeto de veto presidencial:
 

I – DO CONTEÚDO DO PROJETO DE LEI Nº 7.448/2017 E DA AFRONTA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AO INTERESSE PÚBLICO.

 
 

  1. A ATRICON e a AUDICON estão comprometidas com as questões sensíveis à atuação dos Tribunais de Contas, certas de que o fortalecimento do controle externo é de fundamental importância diante do momento de crise econômica, fiscal e política que o país atravessa.
  2. A aprovação do Projeto de Lei nº. 7.448/2017, que inclui artigos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), se deu sem um apropriado debate ou audiências públicas com a adequada participação dos órgãos diretamente afetados. A dispensa da deliberação em plenário da Câmara dos Deputados não privilegiou o debate, e sem este, a proposição legislativa é temerária por fragilizar o direito, sobrecarregando o judiciário e os tribunais de contas com ponderações de mérito acerca da atuação dos agentes públicos.
  3. A LINDB constitui relevante parâmetro interpretativo das normas jurídicas brasileiras, socorrendo à função precípua de conduzir as melhores compreensão e aplicação das regras. Alterada em período difícil da história brasileira – no regime ditatorial que se desenvolveu ao abrigo da Constituição de 1937 – percebe-se ainda hoje a maior parte de suas disposições remontando ao livro original de introdução ao Código Civil de 1916 e à inspiração original de juristas do calibre de Teixeira de Freitas e Clóvis Beviláqua, que na virada do século assombraram o Brasil e o mundo com um esboço seguido de um Código Civil muito à frente de seu tempo.
  4. De fato, as disposições então lançadas provaram formidável resiliência, superando a prova do tempo e das gerações. A Lei das Leis Civis resistiu a regimes, a formas e a reformas de governo e experimentou incólume a passagem de cinco das oito Constituições brasileiras. Seu texto está verdadeiramente gravado no recôndito mais íntimo do Direito brasileiro e do senso de justiça de nossa gente. Tais disposições são mais materialmente Constitucionais que tantos provimentos atualmente relacionados em nossa carta.
  5. Eis o motivo porque, em se mudando-a, muda-se o próprio Direito. Não pode pairar nenhuma sugestão de que tal iniciativa é sorrateira ou que não goza de referendo nas categorias às quais se destina e no grande seio da população. Perceba que o projeto regimentalmente dispensou a votação do Plenário da Câmara dos Deputados.
  6. O núcleo da LINDB constitui a promoção da justiça e da equidade, observando o fim social e o bem comum. Entretanto, alguns dispositivos do referido Projeto de Lei não atendem a esses desígnios, e abrigam casuística inoportuna ou de impossível concretização, buscando, ao revés, a contramão da segurança jurídica e da eficiência na criação e na aplicação do direito público.
  7. Se sancionada, a Lei importará gravosas consequências para o ordenamento jurídico, transferindo para o julgador a responsabilidade de antever as consequências advindas da omissão, imprudência, imperícia, negligência ou má-gestão do administrador público e atribuindo a tal julgador papel de natureza incompatível com a magistratura. Se julga, não pode ele também administrar. Esta é lição imemorial que se vê vulnerada.
  8. Diante do risco de decidir com base nas novas disposições legais, de outra, haverá quem hesite em fazê-lo, e assim procedendo, precipite onda de demérito calamitoso e contrário à necessária eficiência do setor público e à accountability. As disposições que ora se analisa, longe de promoverem um círculo virtuoso na administração pública que parecem animar a proposição, acarretaram retrocesso no Estado Democrático de Direito brasileiro, premiando o casuísmo, a ineficiência e a impunidade.
  9. Em preliminar, é preciso apontar a contrariedade com o art. 7º, incisos II e IV da Lei Complementar 95/98, que estabelecem que a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão, e que o mesmo assunto não merecerá tratamento em mais de uma lei.
  10. A despeito de promover a estabilidade das relações de direito público, introduzindo normas para a sua hermenêutica, o Projeto está cuidando de processo, criando medidas judiciais, impondo meios de análise de provas, fixando elementos das sentenças e acórdãos, e também de direito material, ao regular a responsabilização de agentes públicos. Portanto, temas afetos ao Código de Processo Civil, ao Código Civil, às leis de Direito Administrativo e Leis Orgânicas dos Tribunais de Contas.
  11. Como consta da justificativa do projeto original, a preocupação dos professores de Direito que formularam a proposta, acolhida pelo Senador autor do projeto, é a estabilidade das relações negociais com a Administração, com os investimentos privados no setor público e com uma suposta oscilação de entendimentos por parte do Poder Judiciário e órgãos de controle.
  12. Entretanto, convém lembrar que a invalidação dos atos e negócios jurídicos contrários à legislação é que mantém a segurança jurídica, revelando-se um equívoco invocar o terreno da casuística como ambiente seguro.
  13. Ademais, transferir ao julgador e ao controlador a responsabilidade de indicar opções de gestão em sua decisão, vinculando o administrador, por um lado, e retirar-lhes a liberdade de, no caso concreto, avaliar as provas e circunstâncias determinando medidas, por outro, afronta-se, com um mesmo instrumento normativo e a um só tempo, o livre exercício dos Poderes Executivo e Judiciário e o controle externo, em flagrante afronta ao art. 34, incisos IV e VII, alínea “d”, da Magna Carta.
  14. Vale dizer que o livre exercício dos Poderes é tão caro ao nosso Estado Democrático de Direito que a Constituição da República tipifica como crime de responsabilidade do Presidente da República a prática de ato que atente contra tal princípio fundamental (art. 85, inciso II).
  15. Nesse sentido, o parágrafo único do 20, ao exigir que a motivação da decisão explicite as possíveis alternativas diante da necessidade de adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, acaba por exigir do julgador o impossível: que ele conheça em detalhes a realidade de todos os órgãos públicos. Ora, o Direito não pode exigir o impossível. O dispositivo subverte a lógica de que cabe ao julgador apreciar os litígios tão somente nos contornos originalmente deduzidos, além de colocar o consequencialismo no centro da investigação judicial, cerceando sua dimensão axiológica.
  16. Quanto ao assunto, é suficiente o Código de Processo Civil que estabelece, em seu art. 489, caput, §§1º e 2º, nas regras de fundamentação da decisão, como elementos essenciais, a obrigatoriedade de análise das questões de fato, e a explicação da relação da norma com a questão decidida, o motivo concreto do emprego de conceitos jurídicos indeterminados, o enfrentamento de todos os argumentos deduzidos no processo e a explicação da ponderação efetuada, no caso de colisão entre normas.
  17. Nessa linha, ao contrário do que se busca, esse dispositivo pode comprometer a eficiência na aplicação do direito público, pois, diante da ausência de cognição completa acerca do estado da administração pública – e toda lide pressupõe uma cognição fracionária do conjunto social que se deseja pacificar – torna-se livre o julgador para dispensar a reconstrução do fato controvertido, o que, por óbvio não pode encontrar guarida no ordenamento.
  18. De igual modo, o 21 também exige do julgador o impróprio, ao dispor que ele deverá indicar de modo expresso, na decisão, as suas consequências jurídicas e administrativas. É forçoso reconhecer que não se pode autorizar o julgador a ponderar acerca dos desejos da Lei. Se o efeito da Lei é gravoso, o Legislativo assim o pretendeu, e ele, sim, conhecedor dos seus efeitos. Se diferente desejar, diferentemente legisla. Já o poder-dever de planejar, organizar e executar a ação administrativa é do administrador público, que possui a habilidade e a competência necessárias para tal mister, sem se descuidar dos aspectos legais. A disposição insinua desincumbir o gestor dessa providência, recolocando-a na figura do julgador.
  19. 22 determina que “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados” e nisso esgarça o sistema com conceitos de alta indeterminação jurídica e abstração terminológica. O que poderia ser considerado “obstáculo”, “dificuldades reais” e “exigências de políticas públicas”? Tal dispositivo contamina o próprioprincípio da legalidade que informa o direito administrativo, pois permite argumentos que flexibilizam exageradamente a exegese das normas, tolerando interpretações que podem ser contrárias aos próprios princípios constitucionais que exigem eficiência, moralidade, publicidade, legalidade e impessoalidade do administrador público.
  20. Novamente, ao parágrafo único do art. 23 colhe-se disposição incompatível com a Constituição Federal, vez que permite ao administrador público o direito de negociar com o julgador, celebrando-se compromisso para o ajustamento da irregularidade. Se lhe é dado negociar, que o faça nos limites das leis especiais que preveem os ajustamentos de conduta e figuras similares, que devem ser anuídas pelas partes competentes para deduzir a pretensão punitiva do Estado em juízo. A Lei de Introdução é âmbito de todo inadequado para regular acordos de leniência.
  21. Nessa esteira, o art. 25 é ainda mais preocupante, novamente por compartilhar a administração da coisa pública com aqueles que a controlam, mas, mais grave, embaraçando o poder de controle que é ínsito ao próprio Legislativo por meio do Controle Externo. De fato, em flagrante afronta aos arts. 70 e 71 da Constituição Federal, o artigo permite, com eficácia erga omnes, ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa pelo Poder Judiciário, tendo o Ministério Público como partícipe. A inconstitucionalidade é patente por atribuir, por via infraconstitucional, competência que a carta desejou para o Poder Legislativo e os Tribunais de Contas.
  22. A norma – que acomoda Direito de Ação no seio de nossa secular Lei de Introdução – torna possível submeter a órgão judicial questões afetas à conduta administrativa, inclusive quanto à sua adequação e economicidade dos preços e valores, para, ao fim, sacar sentença declaratória de validade com força própria da coisa julgada, oponível, portanto, ao próprio Poder Judiciário que faz as vezes de assessoria jurídica.
  23. Se, eventualmente, forem desvendados fatos que revelem tal interpretação do Direito como lesivo ou ameaçador de direito, estará excluída a via judicial. Em um momento da história, em que o passar do tempo tratou de emergir graves malfeitos administrativos realizados, não pode haver sugestão de que o intuito da Lei em mãos é impedir a responsabilização.
  24. Como exemplo, tal ação poderia ser manejada tendo por objeto licitação controvertida, a fim de que o Juízo a declare válido mesmo sem a cognição de um sem número de aspectos que, apesar disso, transitam em julgado com efeito vinculante para o Poder Legislativo local e para o Tribunal de Contas, que, no exercício de funções entregues pela Constituição, não podem mais verter a crítica. O correto manejo da ação reclama o estrito contorno da lide que será deduzida. Além do vício de inconstitucionalidade, parece não ter se levado em consideração a miríade de demandas que podem recair sobre o judiciário, sobrecarregando-o sobremaneira.
  25. Ademais, conforme o 26, a autoridade administrativa poderá celebrar compromisso a fim de buscar uma solução jurídica, podendo transacionar sanções, créditos passados ou estabelecer regime de transição. Ainda, a norma expressa que o compromisso firmado não poderá ser sindicado, impugnado, restringido e muito menos extinto, quando reconhecido por ”orientação geral”.
  26. A proposta faculta o casuísmo. A transação de sanções, créditos passados ou regime de transição, sem que comprovado o interesse público envolvido, incorre na impunidade seletiva da autoridade administrativa, erodindo princípios basilares da responsabilidade na gestão pública. A Lei anticorrupção contempla sanções premiais, tão somente nas hipóteses de o autor do ilícito colaborar em benefício do Poder Público. Fora dessa apertada vênia, as transações previstas no dispositivo não passam de mera condescendência sem contrapartida de interesse público.
  27. 2º do art. 26 permite que seja “requerida autorização judicial para celebração do compromisso, em procedimento de jurisdição voluntária, para o fim de excluir a responsabilidade pessoal do agente público por vício do compromisso, salvo por enriquecimento ilícito ou crime”. Claramente o artigo pretende excluir a responsabilização administrativa, o que não é permitido à Lei infraconstitucional, uma vez que cabe ao Controle Externo analisar a conduta da Administração Pública.
  28. Novamente percebe-se impropriedade ao 28, pois afirma que ele somente responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. Aqui, a norma isenta de responsabilidade quem atua de formanegligente, imprudente e imperita. O dispositivo retrocede na almejada profissionalização da gestão pública, tão ansiada pela sociedade brasileira e buscada pela própria administração, em especial, pelo Controle Externo.
  29. A lógica exposta no dispositivo desconsidera o dever do Estado e de quem atua em prol do interesse público de agir com o máximo zelo e respeito às normas, não sopesando como relevante a responsabilidade daqueles que, embora não tenham atuado com dolo, demonstraram descuido ou inaptidão para atuar no serviço público e, em decorrência disso, também geraram prejuízos a toda uma coletividade.
  30. O conceito de erro grosseiro constante do 1º do art. 28 autoriza ampla abstração, em especial para permitir o emprego de julgados divergentes e doutrina extravagante como motivação de conduta que, mesmo que venha a ser rechaçada pelos órgãos de controle ou judiciais, encontrar-se-á imune à responsabilização. De outro norte, a regra permite a compreensão de que, com o advento de novidade legislativa, qualquer interpretação de Lei nova pode ser tida como erro grosseiro. Enfim, não parece haver um efeito claro e em linha com o intuito que parece se sublinhar a proposta, mas, em princípio, basta que o agente público fundamente sua conduta em parecer jurídico de conveniência para que se exima de toda e qualquer responsabilidade.
  31. Ademais, transferir para o Estado (§2º do art. 28) o ônus de custear a defesa do agente público por ato ou conduta praticada no exercício de suas competências é de constitucionalidade questionável por retirar a responsabilidade pessoal do agente eobrigar o Estado a assumir o risco da conduta do agente contra o próprio Estado.
  32. No mesmo sentido, verificar-se-á evidente conflito de interesses, vez que o Estado poderá ser obrigado a custear a defesa do agente público que lhe causou prejuízo, inviabilizando, inclusive, as ações de regresso oriundas da responsabilidade subjetiva do agente em face do Estado, que necessite assumir, por responsabilidade objetiva, o dano por ato ou conduta causado a terceiro.
  33. Enfim, o §2º do art. 28 não apresenta qualquer relação com o objeto da proposição legislativa, tratando-se de matéria estranha ao propósito da LINDB, que é o de definir os princípios de interpretação integradora no ordenamento jurídico brasileiro.

 

II – CONCLUSÃO

 
 
 Por todo o exposto, a ATRICON e a AUDICON reforçam a necessidade  de assegurar a efetividade do controle da administração pública, notadamente no momento atual de grave crise econômica, financeira e política que o Brasil atravessa. O Projeto de Lei nº 7.448/2017 opera ao contrário da esperança que o brasileiro deposita nos poderes constituídos e ao arrepio de princípios e postulados da República Federativa, da harmonia entre os Poderes e da inafastabilidade da jurisdição.
 
Os Tribunais de Contas do Brasil têm pautado sua atuação pelo aprimoramento da governança e da gestão pública, tão fundamentais para a concretização dos objetivos republicanos, plasmados no art. 3º da Constituição Federal de 1988.
 
A ATRICON e a AUDICON, por entenderem que inúmeros trechos da Lei propiciam impunidade, sobrecarregam o Poder Judiciário com atividade estranha àquele órgão, divertem o Controle Externo do seu leito constitucional e promovem tais reformas de maneira pouco debatida, vez que sem deliberação do Plenário da Câmara dos Deputados – medida que, ainda que tolerada regimentalmente, no caso, se impunha – concluem que deva ser o projeto integralmente vetado.
 
 
 
 
 

Atricon                                                                                  Audicon

                                                        

Fábio Túlio Filgueiras Nogueira                                         Marcos Bemquerer Costa 

Presidente                                                                                      Presidente