O CASO MASTER: QUEM PAGA O PREJUÍZO DOS RPPS?
A liquidação extrajudicial do Banco Master, decretada pelo Banco Central, ainda reserva, com bastante certeza, diversos desdobramentos, revelações e impactos nas esferas judicial e política e também, possivelmente, na disciplina legislativa e regulatória. Como numa bem elaborada série de streming, novos episódios e novas temporadas poderão amplificar o elenco de vilões e esmiuçar o seu modus operandi.
O que já se sabe é que pelo menos 18 Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) sofrerão um impacto patrimonial estimado inicialmente em R$ 1,9 bilhão, derivado de aplicações realizadas em Letras Financeiras do Banco Master, ora convertidas em “papéis podres”, com valor recuperável ainda incerto.
O agravante é que os RPPS se destinam a assegurar o pagamento de aposentadorias e pensões aos servidores públicos e seus beneficiários legais. Assim, uma redução bilionária nesses fundos patrimoniais representa uma ameaça concreta aos direitos previdenciários de centenas de milhares de pessoas, cuja imensa maioria tem a aposentadoria ou pensão como única ou principal fonte de renda, após décadas de serviço e de contribuições ao RPPS.
A pergunta que imediatamente se impõe – “quem paga?” – parece ter resposta intuitiva para muitos, mas talvez seja útil desacelerar um pouco o impulso e decompor a questão em problemas preliminares: o que e quanto se paga, para quem, como, quando e, só então, quem arcará efetivamente com o ônus.
1. O que e quanto se paga? Natureza e extensão do dano
A primeira surpresa, para quem olha apenas as manchetes, surge ao se examinar a contabilidade dos fundos: em muitos casos, os ativos ainda se encontram registrados pelo valor contratado, ao menos até que haja um evento contábil de reclassificação ou baixa. A informação divulgada pela instituição financeira envolvida pode, nesse momento, ser tudo menos estável, razão pela qual ganham relevo mecanismos como o Regime de Administração Especial Temporária (RAET) e outras formas de intervenção que buscam estabilizar o fluxo de informações.
Mesmo assim, ainda que se venha a reconhecer contabilmente que determinado ativo vale “zero”, a pergunta jurídica e econômica permanece:
- o que se deve reparar é a remuneração frustrada (lucros cessantes), isto é, o fluxo de juros e correção monetária prometido e não auferido?
- ou a recomposição do capital, segundo um índice de inflação que preserve o valor real desde a data da decisão de investimento?
- ou, ainda, alguma combinação entre ambos, considerando o que efetivamente vier a ser recuperado em eventual concurso de credores?
Em termos de responsabilidade civil, estamos diante da clássica distinção entre dano emergente (reposição do capital) e lucros cessantes (ganhos que razoavelmente se poderiam esperar). Se, por hipótese, em um processo concursal ou de liquidação, o ente emissor ou a instituição financeira restituírem 50% do valor contratado, o responsável solidário não deve recompor a integralidade do principal, mas apenas a diferença entre o que deveria existir e o que de fato restou, acrescida dos ganhos que, segundo um padrão prudente, seriam esperados de um investimento compatível com a política de investimentos do plano.
Em trabalho anterior, publicado em obra organizada por Ana Cristina Moraes[1], propusemos justamente metodologias de estimativa do dano em casos de exposição temerária dos recursos previdenciários, distinguindo:
- o que decorre de risco de mercado ordinário;
- o que decorre de violação de limites, concentração excessiva ou produtos inadequados;
- e a forma de capitalizar o ressarcimento de modo compatível com o horizonte atuarial dos planos.
Esse ponto é central: o conceito de “prejuízo” não é trivial. Ele precisa ser construído à luz da política de investimentos, do fluxo atuarial de benefícios e de uma comparação com alternativas de investimento prudente que estavam disponíveis no momento da decisão.
Em outras palavras, não basta examinar se as aplicações em papéis do Banco Master tenham observado procedimentos formais para investimento de recursos previdenciários (critério da legalidade). É necessário considerar se tais aplicações, no momento em que foram realizadas, também atendiam os critérios de legitimidade e economicidade[2], bem como o princípio da prudência financeira[3], inclusive considerando as informações disponíveis à época e as orientações e alertas dos órgãos de controle.
2. Pagar para quem? Ente, fundo, plano ou beneficiário
A segunda dimensão é subjetiva: quem é o credor da indenização? Alguns candidatos imediatos aparecem:
- O ente federativo patrocinador (União, Estado ou Município), que experimenta o reflexo das perdas na necessidade futura de aportes adicionais – dano em “ânimo mediato”.
- O fundo previdenciário capitalizado do RPPS, enquanto patrimônio segregado destinado a honrar benefícios futuros – lesado em “ânimo imediato”.
- Fundos em regime de repartição simples ou fundos financeiros, que, embora não capitalizados nos mesmos moldes, também suportam despesas previdenciárias em sentido amplo.
- Os próprios segurados e beneficiários, enquanto titulares de expectativas de benefício que podem ser afetadas, direta ou indiretamente, por desequilíbrios atuariais.
A Lei nº 9.717/1998, ao tratar da organização dos RPPS, estabelece, em seu art. 2º, § 1º, que as insuficiências financeiras e atuariais futuras são de responsabilidade do ente federativo instituidor. Em termos práticos, isso significa que o interesse do beneficiário final é protegido, primariamente, pela obrigação do ente de recompor o equilíbrio do regime, e não por uma relação direta e individual com o agente causador do prejuízo.
Se, todavia, o ressarcimento for canalizado diretamente ao ente, ou ainda a um fundo em regime de repartição, corre-se o risco de converter um dano tipicamente intertemporal (perda de capacidade futura de financiamento) em alívio de caixa imediato, justamente quando o orçamento está pressionado. Substitui-se o capital que deveria estar acumulado para benefícios futuros por uma redução pontual da pressão sobre a despesa presente.
Por isso, sob a ótica da boa governança previdenciária, parece mais coerente que qualquer ressarcimento seja aportado ao fundo previdenciário capitalizado ou à massa patrimonial vinculada ao plano, com a devida capitalização, de modo a recompor as maturidades das carteiras afetadas; o nível de capitalização atuarial; e, em última análise, a trajetória do resultado atuarial do regime.
3. Pagar como? Títulos executivos e canais de responsabilização
A terceira questão diz respeito ao instrumento de cobrança e ao tipo de título que permitirá invadir o patrimônio dos responsáveis. Em casos como o do Banco Master, os valores em discussão são tão expressivos que dificilmente haveria voluntariedade no ressarcimento integral. Fala-se, portanto, em processos de execução, fundados em títulos judiciais ou extrajudiciais.
O caminho mais intuitivo é o título judicial, resultante de ações de responsabilidade civil ou de improbidade administrativa, após longo processo de conhecimento. Contudo, esse não é o único.
O Art. 71, § 3º, da Constituição Federal dispõe:
“As decisões do Tribunal de Contas de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo.”
Isso significa que, uma vez concluído o processo de controle externo – com ampla instrução técnica, perícias contábeis, atuariais e financeiras –, a decisão que imputa débito ao agente pode ser diretamente executada, sem necessidade de novo processo de conhecimento.
É um título especialmente adequado para casos de complexidade técnica elevada, nos quais o Tribunal de Contas já consolidou sua competência e experiência. É o foro apto a apreciar a existência de dano ao erário previdenciário, o nexo de causalidade com condutas específicas dos gestores; e a quantificação do prejuízo.
Além disso, tais decisões podem imputar débito de forma solidária a múltiplos responsáveis (gestores, consultores, instituições financeiras), desde que observado o devido processo, o que, do ponto de vista da recuperação de ativos, é particularmente importante em casos de cadeia decisória difusa.
Na prática, a arquitetura institucional mais eficiente parece ser a de coordenação entre os processos de controle externo (Tribunais de Contas), os processos de responsabilização judicial (civil, penal, improbidade) e os mecanismos administrativos próprios da regulação financeira e previdenciária.
4. Pagar quando? O tempo do direito e o tempo da demografia
A quarta dimensão é temporal. Quando o ressarcimento chega à massa previdenciária?
Quando há cobertura pelo Fundo Garantidor de Créditos (FGC), o prazo de 45 dias funciona como horizonte de expectativa para o pequeno investidor. Entretanto, RPPS não são elegíveis à proteção do FGC. No caso dos fundos de pensão públicos, o caminho passa, em regra, por:
- processos de intervenção/liquidação da instituição financeira;
- processos administrativos e de controle externo;
- e, por fim, ações de execução ou de conhecimento, quando não houver título executivo extrajudicial.
Em qualquer um desses cenários, o tempo é contado em anos, não em meses. Enquanto isso, o passivo atuarial continua a se projetar, os benefícios continuam sendo concedidos, e a janela para um equacionamento menos doloroso vai se estreitando.
Essa defasagem entre o tempo do direito (lento, procedimental) e o tempo da demografia (que marcha inexoravelmente) é um dos elementos que mais agravam o problema. Quanto mais tardio o ressarcimento, maior precisa ser o esforço de capitalização para repor o efeito dos juros compostos que deixaram de incidir. E maior a probabilidade de que o ente precise, nesse intervalo, aportar recursos orçamentários adicionais, comprimindo outras políticas públicas.
5. Enfim: quem paga?
Retomemos, por fim, a pergunta inicial. Em um ambiente de grande ansiedade, a tentação é buscar respostas simplistas: “quem paga é o gestor”, “é a instituição financeira”, “é o consultor”, “é o ente”. A legislação, porém, oferece uma fórmula mais sofisticada, especialmente após a reforma da previdência.
A Lei nº 13.846/2019 introduziu, na Lei nº 9.717/1998, o Art. 8º-A, que dispõe:
“Art. 8º-A. Os dirigentes do ente federativo instituidor do regime próprio de previdência social e da unidade gestora do regime e os demais responsáveis pelas ações de investimento e aplicação dos recursos previdenciários, inclusive os consultores, os distribuidores, a instituição financeira administradora da carteira, o fundo de investimentos que tenha recebido os recursos e seus gestores e administradores serão solidariamente responsáveis, na medida de sua participação, pelo ressarcimento dos prejuízos decorrentes de aplicação em desacordo com a legislação vigente a que tiverem dado causa.”
Alguns elementos merecem realce:
- Solidariedade: não há um único “pagador” exclusivo. A responsabilidade espraia-se pela cadeia decisória – dirigentes públicos, unidade gestora, consultores, distribuidores, instituição financeira, fundo de investimento, gestores e administradores.
- Na medida de sua participação: a solidariedade não elimina a necessidade de apurar graus de contribuição e de repartir interna e/ou regressivamente o ônus.
- Aplicação em desacordo com a legislação vigente: não se trata de punir resultados ruins em si, mas condutas de investimento que desbordam dos limites normativos, prudenciais e de governança.
- Prejuízos decorrentes: volta-se à questão do “o que e quanto pagar”; é necessário demonstrar que o prejuízo – em termos de perda de capital, frustração de remuneração ou agravamento do desequilíbrio atuarial – decorre causalmente da conduta ilícita ou, no mínimo, de exposição temerária dos recursos previdenciários.
Do ponto de vista macroeconômico e atuarial, quem paga, em última instância, é sempre a sociedade: seja por aportes adicionais de recursos públicos, seja por compressão de outros gastos, seja por perda de credibilidade nas regras previdenciárias. A função do art. 8º-A e das decisões dos Tribunais de Contas é redirigir parte desse custo para aqueles que, por ação ou omissão qualificada, aumentaram indevidamente o risco do sistema.
Em síntese:
- paga-se a recomposição do dano, delimitado de forma tecnicamente robusta;
- paga-se ao patrimônio previdenciário vinculado ao plano, com vistas à recomposição da sua trajetória atuarial;
- paga-se por meio de títulos executivos judiciais e, especialmente, das decisões de Tribunais de Contas com imputação de débito;
- paga-se tarde, em geral mais tarde do que seria desejável do ponto de vista da demografia e dos juros compostos;
- e pagam solidariamente os diversos agentes que integraram a cadeia de decisões ilegais ou imprudentes, embora, no limite, a sociedade custeie o que não for recuperado.
O desafio que o Caso do Banco Master expõe, em escala quase pedagógica, é o de aperfeiçoar a governança previdenciária para que:
- exposições temerárias sejam identificadas ex ante;
- responsabilidades sejam atribuídas com rigor técnico e jurídico;
- e o ressarcimento, quando necessário, seja canalizado de forma a proteger o equilíbrio atuarial, e não apenas aliviar, episodicamente, a pressão sobre o orçamento corrente.
Alexandre Sarquis é conselheiro substituto do TCE/SP e coordenador técnico do Comitê de Previdência Social da Atricon/IRB
Luiz Henrique Lima é professor e Vice-presidente de Controle Externo da AUDICON
[1] “Exposição Temerária de Recursos do RPPS: uma Metodologia para Estimativa de Danos e Sugestões para Aprimorar a Governança” https://www.abipem.org.br/wp-content/uploads/2025/03/2025-02-14_PREVIDENCIA_E_REFORMA_EM_DEBATE.pdf
[2] CF: art. 70, caput.
[3] LRF: art. 43, §1o.