Os acordes de ‘Time’, megassucesso do Pink Floyd, foram ouvidos nas pacatas esquinas da mineira Serra da Saudade, o menor dos municípios brasileiros, com 833 habitantes, na bacia do rio São Francisco.

‘Time’ é a música mais consagrada do álbum ‘The Dark Side of the Moon’, um dos quatro mais vendidos de todos os tempos, em todos os gêneros, superando os Beatles, Rolling Stones, Elvis Presley, U2 etc. Uma hora, ‘Time’ tinha que chegar em Serra da Saudade.

‘Time’ é uma obra-prima do rock progressivo e conta a história de um jovem que desperdiça seu tempo de forma aleatória, até que um dia se dá conta de que o tempo perdido não pode ser recuperado. Então corre desesperado, mas o tempo corre mais acelerado porque ele já não é mais tão jovem e tem menos fôlego. Perdeu a hora da partida e nunca encontra tempo para fazer o que precisa ou gostaria. A harmonia da letra com a combinação de guitarra, baixo, bateria, teclados e arranjos vocais é simplesmente perfeita, revolucionária para a época (1973) e encantadora até hoje. Sugerimos que coloque a música para tocar enquanto lê o restante do artigo.

Nosso tema é a transformação digital nos municípios brasileiros. A transformação digital é um imperativo para a modernização de governos e otimização da entrega de serviços à população. Em particular nos municípios, uma postura proativa na formulação de políticas públicas propicia aos governos antecipar-se a desafios urbanos, sociais, ambientais e econômicos específicos, garantindo uma resposta ágil e eficiente, fornecendo soluções antes mesmo de serem solicitadas e com isso otimizando recursos. Por sua vez, o uso estratégico de dados potencializa essa capacidade de antecipação, transformando o poder público municipal em uma entidade mais preditiva e menos reativa.

Atenção: não se trata da digitalização dos serviços públicos, mas de sua transformação digital, o que pressupõe um novo desenho do serviço público, com foco no cidadão. E mais: uma gestão não apenas centrada no usuário, mas por ele conduzida.

O conceito de “governo como plataforma” também se destaca, indicando uma necessidade de os municípios se abrirem para cocriações com a sociedade. A digitalização não deve ser apenas um processo de transferência do analógico para o digital, mas um repensar estratégico de como os serviços são fornecidos e como podem ser otimizados. Ao considerar  as tecnologias digitais desde a concepção de políticas públicas (digital by design), o governo pode repensar e simplificar seus processos. Isso gera uma administração mais eficiente, sustentável e cidadã. O envolvimento ativo dos cidadãos, empresas, associações e outras organizações na definição de suas necessidades transforma a elaboração de políticas e serviços públicos e oportuniza governos mais alinhados às reais demandas da população.

Tal abordagem fomenta a inovação e privilegia a transparência, dois pilares do governo digital.  A transparência deve ser acompanhada da simplificação, com a utilização de linguagem simples, abominando o juridiquês e tecnicismos para tornar-se de compreensão mais fácil, imediata e precisa pelos cidadãos. O hermético e o complicado são selos do paradigma patrimonialista, do governo de poucos e para poucos.

A transparência não consiste apenas em propiciar o acesso à informação, mas em definir a abertura de dados como padrão (open by default). Comprometendo-se com a divulgação proativa de dados em formatos abertos e tornando seus processos acessíveis por meio das tecnologias digitais, os governos reforçam a sua transparência e confiabilidade

Assim, a transformação digital implica numa melhor comunicação entre governo local e cidadãos, com o potencial de alterar profundamente o funcionamento do setor público. Sua aplicação promete um governo mais conectado, transparente, tempestivo e eficiente, atendendo melhor às demandas e desafios contemporâneos.

Essa revolução já está acontecendo em muitas cidades. Vai chegar em Serra da Saudade – MG e também no seu município, caro leitor. Mas quando?

Quem não constrói hoje o seu próprio futuro digital será obrigado a suportar o pior do passado analógico. Estará, como o personagem de ‘Time’ do Pink Floyd, condenado a correr e correr e só ver aumentar o atraso em relação aos líderes.

 

Luiz Henrique Lima é Doutor em Planejamento Ambiental e professor.

Cinara de Araújo Vila é Mestre em Indústria Criativa, procuradora municipal de Novo Hamburgo e finalista do Prêmio de Inovação Judiciário Exponencial 2023.