Securitização de recebíveis municipais – cuidados para além daqueles da Lei Complementar 208/2024, por Alexandre Manir Figueiredo Sarquis

O Direito Financeiro é um grande desconhecido no ensino jurídico brasileiro. Sua inclusão no programa do exame nacional (a partir da 38º edição) pouco chamou a atenção da academia, que ainda relega o assunto às disciplinas optativas, se é que as oferecem. Ainda assim, há cátedras estabelecidas de Direito Financeiro, por exemplo, na Universidade de São Paulo e na Universidade Federal do Maranhão, entre outras.

Trata-se da disciplina jurídica dos ingressos e das saídas de recursos públicos, do direito do orçamento público, da regulação jurídica do endividamento, do primo irmão do direito tributário – pelo lado das receitas – e do primo irmão do direito das licitações, contratos e convênios – pelo lado das despesas. É também um ramo repleto de peculiaridades que o afeiçoam ao Direito Constitucional, tanto que amiúde é debatido no STF.

Ao contrário de outros ramos do direito, em que os objetos de interesse assumem natureza jurídica de mero ato administrativo, tais como o lançamento tributário ou o contrato administrativo, no Direito Financeiro, o principal objeto de interesse adota natureza jurídica de lei propriamente dita: o orçamento público é uma lei ordinária anual. Se as normas que regulassem a produção do orçamento estivessem a ele hierarquicamente equiparadas, isto é, se fossem outras leis ordinárias, restaria a impressão de que as regras seriam compostas conforme se anda, a cada ciclo que se inicia.

Assim que um naco do Direito Financeiro consta diretamente na Constituição Federal, enquanto outro naco consta em legislação complementar, a exemplo da LRF e da Lei 4.320/1964 (recebida como lei complementar pela CF/88). A presunção é que leis complementares – diferentemente de leis ordinárias – propiciam maior rigidez, mas esse não tem sido necessariamente o caso no Brasil: desde a Constituição de 1988 promulgamos 156 leis complementares (da 56 de 1988 até a 214 de 2025), grande parte delas regulando algum aspecto do Direito Financeiro, enquanto passaram-se apenas 37 leis orçamentárias.

Refletindo sobre esse panorama, conclui-se ser essencial que pressões sazonais e maiorias circunstanciais sejam obtemperadas, pelo texto direto da norma complementar, pela Constituição, pela prática, pela doutrina e pelos julgamentos dos Tribunais de Contas e do Judiciário. Trata-se do grande desafio de conciliar a vontade republicana, vocalizada pelo Poder Legislativo.

LEI COMPLEMENTAR 208/2024

Nesse cenário é que veio a luz a Lei Complementar 208/2024, introduzindo o art. 39-A na Lei 4320/1964 (marco dos orçamentos públicos). Nele, fica autorizada a cessão onerosa de direitos tributários e não tributários a pessoas jurídicas ou fundos de investimentos.

O projeto iniciou-se pela mão do incansável e estimado Senador José Serra (PLS 204/2016 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125723), e desde logo exibiu uma indisfarçada inspiração na norma paulista (Lei 13723/2009 https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2009/lei-13723-29.09.2009.html) que tem disposição semelhante para viabilizar as cessões à Companhia Paulista de Securitização – CPSEC. É bem verdade que há outras experiências, por exemplo, dos governos dos Estados do Piauí, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, bem como do município de Belo Horizonte (veja o artigo de Edson Ronaldo Nascimento para uma revisão de tais experiências https://www.conjur.com.br/2024-ago-02/a-securitizacao-de-recebiveis-e-a-lc-208-2024/).

SECURITIZAÇÃO

A lei ficou conhecida pela expressão “securitização”, que é um anglicismo, uma palavra transplantada do inglês, jurisdição em que as securities são o que conhecemos no Brasil como títulos e valores mobiliários. Securitização é, portanto, a transformação de um ou de alguns contratos em outros (geralmente muitos outros), sendo estes últimos considerados valores mobiliários. Estes valores mobiliários gozam de um mercado secundário bem regulado (CVM), o que potencializa sua segurança e volume de operações. A técnica existe desde há muito, mas ganhou certo impulso no mercado de endividamento público com o chamado “Brady Plan”.

Por meio dele, contratos gigantescos e não performados de países em desenvolvimento foram trocados por títulos – os bradies – com prazos e valores mais atraentes para os consumidores de instrumentos financeiros habituais, em uma operação garantida pelo World Bank do FMI. Muito rapidamente floresceu o mercado secundário dos bradies o que, por sua vez, atraiu mais credores e mais países devedores – inclusive o Brasil, que inicialmente havia se mostrado reticente.

Com isso, os credores originais limitaram sua exposição e devedores reduziram o custo de captação. Foi o típico ganha-ganha que ocorre quando são quebradas barreiras burocráticas, por detrás das quais estavam represados legítimos desejos dos mercados e da administração pública. A técnica contribuiu decisivamente para a solução da crise da dívida externa de muitos países nos anos 80, e da “década perdida” no Brasil.

Mas aqui se iniciam os conflitos da securitização com o Direito Financeiro corrente. Isadora Parmigiani de Biasio, estudando as novidades legislativas, já havia alertado para a necessidade de observar as balizas constitucionais (https://www.conjur.com.br/2024-jul-24/securitizacao-das-dividas-ativas-no-mercado-breve-analise-da-lc-no-208-2024/). É necessário conceber como nosso Direito Financeiro acomoda a nova securitização.

Por exemplo, o art. 11 da Lei Complementar 148/2014 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp148.htm#art11) é bastante claro ao estabelecer que “é vedada aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a emissão de títulos da dívida pública mobiliária”. A norma existe, pois, no passado, a emissão de valores mobiliários pelos municípios foi acompanhada por altos custos de transação e até mesmo da prática de ilícitos em certos casos, tais como no chamado “escândalo dos precatórios” (https://www.conjur.com.br/2000-dez-06/conheca_decisao_condenatoria_precatorios_sp/).

EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL

Então, o extraordinário conjunto de vedações ao endividamento dos municípios seria ou não apenas pânico dos burocratas sem real razão de ser?

De um lado, é claro que a simples possibilidade de emissão de títulos municipais não conduz inexoravelmente à certeza de que haverá malfeito. Tome, por exemplo, os Estados Unidos, em que o mercado de títulos estaduais e municipais é tão consolidado que há diversos índices de acompanhamento. A conhecida agência Standard and Poor’s dispõe até mesmo de um painel para eles (https://www.spglobal.com/spdji/en/index-family/fixed-income/us-municipal/ ).

Estamos falando, entretanto, de um Direito Financeiro muito diferente do nosso. Por lá, os governos subnacionais quebram, e estão sujeitos a recuperação judicial similar àquela das empresas privadas (chapter 9 do U.S. Bankrupcy Code de 1978), bem como podem se comprometer contratualmente à manutenção de certas taxas de cobertura do serviço da dívida pela receita, ou outras cláusulas específicas de default que seriam impensáveis no direito brasileiro. Nossas reflexões precisam conceber a lógica jurídica financeira brasileira.

GÊNEROS E ESPÉCIES EM DIREITO FINANCEIRO

Essa lógica jurídica financeira é movida pelo agrupamento em gêneros e espécies. As estatais dividem-se em dependentes e independentes; as receitas dividem-se em correntes e de capital; as despesas podem ser classificadas como “de pessoal” ou não; e assim por diante. A partir dessas classificações se apuram vedações e procedimentos diferentes, como a inclusão em certas bases de cálculo ou o emprego de certas alíquotas. É a gramática de nosso Direito Financeiro.

No caso de nossa securitização, poderíamos nos perguntar se as debêntures emitidas pelas securitizadoras são títulos mobiliários. Esta pergunta é fácil de responder, mesmo porque é a ideia central é que sejam. Outras perguntas não são tão fáceis: as Companhias criadas especifica e exclusivamente para esse fim pelos Estados seriam dependentes ou independentes? seriam esses títulos e contratos “operações de crédito”? tais operações estariam “garantidas” pelo Estado? há “deságio” em relação ao principal? Enfim, um problema percebido como essencialmente matemático da dívida pública acaba por revelar sua verdadeira face jurídica.

Élida Graziane Pinto repercute tais preocupações e aduz suas próprias, tais como a possibilidade do uso eleitoral do instrumento, a de que a operação seja classificada como de crédito, a de que sejam prejudicadas as vinculações mínimas com educação e saúde e até mesmo se existiriam meios para impedir eventual abusividade no deságio praticado (https://www.conjur.com.br/2024-jul-09/riscos-na-securitizacao-de-direitos-creditorios-prevista-pela-lc-208-2024/).

Márcio José Cordeiro Fahel, com sua verve processualista, vê com perplexidade a concatenação de locuções a que a lei se socorre, ora classificando, ora desclassificando as operações: ocorre cessão do crédito, mas ela não prejudica a natureza do crédito; o poder público é isento de responsabilidade na realização da receita, mas conserva suas prerrogativas de executá-la. Enfim, pergunta-se: seria possível ao executado alegar ilegitimidade do exequendo em juízo, haja vista estar pleiteando em seu nome direito verdadeiramente alheio, uma vez que “definitivamente cedido”? Seria possível ao cessionário praticar as intervenções e assistências nos autos da execução? (https://www.conjur.com.br/2025-jan-13/reflexoes-processuais-sobre-a-cessao-de-direitos-creditorios-originados-de-creditos-tributarios-e-nao-tributarios/)

Quanto às suas preocupações, de fato ocorre as operações são intrinsecamente sofisticadas. Perceba que o prospecto definitivo da 3ª emissão da CPSEC conta com quase 500 páginas de disposições (https://portal.fazenda.sp.gov.br/Institucional/Documents/CPSEC/Prospecto%20Definitivo%20da%203%C2%AA%20Emiss%C3%A3o%20de%20Deb%C3%AAntures.pdf). Isso ocorre pois o instrumento ocupa espaço juridicamente complexo, conciliando a legislação financeira, a tributária e a do mercado de capitais. Uma primeira conclusão é que os custos de estruturação da oferta e os custos de integridade são elevados e não podem ser menosprezados.

OPERAÇÃO DE CRÉDITO

Não querendo levantar um tratado sobre cada minúcia, vamos diretamente à classificação financeira que parece mais relevante – e o grande empecilho jurídico, repetidamente mencionado em várias fontes consultadas: a natureza jurídica enquanto operação de crédito. Operações de crédito surgem, no mercado financeiro, em algumas roupagens diferentes, a depender de como se fará com o dinheiro que é recebido: ou não se fala nem qual receita vai pagar a operação, nem qual despesa vai ser suportada por ela – temos aí os empréstimos; ou se fala qual a despesa que vai ser suportada pela operação, mas não qual receita vai pagá-la – são os financiamentos; ou, ao contrário, se fala qual a receita que vai pagar a operação, mas não qual despesa que vai ser suportada por ela – é o desconto ou o adiantamento. De interesse do setor público há ainda a garantia, em que o ente público assegura o cumprimento de obrigação contratual de terceiro, tratada pela lei com o rigor das demais operações de crédito.

A securitização desenhada pela lei estaria no plano mercadológico dos adiantamentos. Quanto a isso, a LRF é razoavelmente abrangente, estipulando que constitui operação de crédito o “recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços” (art. 29, III https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp101.htm#art29iii), bem como equiparando a operação de crédito quaisquer assunções ou confissões (art. 29, §1º e art. 37 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp101.htm#art37). Em suma em se tratando de cessões onerosas de recebíveis a troco de juros, de primeira análise, parece que teríamos o suficiente para inferir sua classificação enquanto “operação de crédito”.

Mas, atenta a isso, a Lei Complementar 208/2024 desde logo enuncia que as operações que cria “não se enquadram nas definições de que tratam os incisos III e IV do art. 29 e o art. 37 da [LRF], sendo consideradas operação de venda definitiva de patrimônio público” (art. 39-A, §4º da Lei 4.320/64 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp208.htm). Um comentário ad latere: a venda definitiva de patrimônio público atrairia a necessidade do procedimento licitatório (art. 2º, I da Lei 14133/2021 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14133.htm#art2i), o que não é preocupação da norma senão pela hipótese de dispensa de licitação que introduz ao art. 39-A, §7º.

REPERCUSSÕES BUROCRÁTICAS DAS OPERAÇÕES DE CRÉDITO

A despeito disso, e dando um passo atrás, poder-se-ia perguntar enfim qual o motivo de tanta disputa em torno de uma simples natureza jurídica da operação de crédito. A resposta: ora, as restrições opostas pelo Direito Financeiro!

Para esclarecer o que acarretaria a classificação como operação de crédito: entrariam em efeito os limites de endividamento (no máximo 120% a Receita Corrente Líquida municipal ou 200% da Receita Corrente Líquida estadual https://legis.senado.leg.br/norma/562458/publicacao/16433576), bem como passaria a ser necessária a aprovação do Senado Federal, após manifestação do Ministério da Fazenda (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp101.htm#art32).

O Tribunal de Contas da União – TCU abordou o tema no acórdão 772/2016-p Min. Rel. Raimundo Carreiro (https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/resultado/acordao-completo/*/PROC%253A01658520090%2520ANOPROCESSO%253A2009). As preocupações do procurador Júlio Marcelo de Oliveira, que agitou a representação, consistiram em: existência de compromisso financeiro do ente público de recompor garantias ou assegurar recebimentos futuros; criação de obrigações financeiras de longo prazo que não ficariam bem evidenciadas nos balanços contábeis; e possibilidade de haver subterfúgio para contornar o limite de endividamento do ente e a revisão do Senado Federal.

O TCU determinou a oitiva da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal – CAE acerca da classificação da cessão de recebíveis como operação de crédito, para fins de aplicação da Resolução SF 43/2001. A CAE respondeu que, “a cessão do fluxo de receitas decorrente de direitos creditórios associados à dívida ativa corresponde a uma venda de ativos, e não a uma operação de crédito” (https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4158087). Considerou, entretanto, que:

  1. a cessão deve ser definitiva;
  2. os recursos não devem custear despesas correntes, exceto se para a previdência social;
  3. os ativos vendidos devem ser definidos e passados, e não gerais e futuros;
  4. a parcela da receita destinada a outros entes não pode ser prejudicada pela operação;
  5. não é possível a garantia de rendimento aos investidores.

RECLASSIFICAÇÃO FORÇADA PELA LEI

Acredito, entretanto, que o antes mencionado §4º do art. 39-A da nova lei põe fim definitivo ao debate. Não por ter introduzido novos argumentos que convençam que se trata de uma coisa ou de outra, mas por uma razão eminentemente prática: ainda que tenhamos, objetivamente, uma símile de operação de crédito – seja desconto de títulos, seja faturização, seja emissão de título público garantido por recebíveis – , a legitimidade para atribuir efeitos e vedações para a prática das tais operações é da lei complementar, norma de mesma hierarquia que aquela estudada.

Dessa forma, tanto faz se a norma opta por enunciar que não se trata de operação de crédito ou se opta por criar uma exceção para os cuidados que a LRF menciona no caso específico da securitização – dá no mesmo.

Ademais, a lei ainda declara que a operação se dá com ânimo definitivo, isentando o poder público de responsabilidade subsequente decorrente do cumprimento da obrigação perante o cessionário, sendo o contribuinte o único obrigado (art. 39-A, IV), o que parece abordar diretamente as preocupações da CAE. A lei paulista vai além, e ainda proíbe a operação com deságio (art. 3º da Lei 13723/2009 https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2009/lei-13723-29.09.2009.html), disposição que, entretanto, não foi repetida na norma federal.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Para além da reclassificação legal, restam dispositivos constitucionais a considerar. Se uma reclassificação se dá ao nível infraconstitucional, não logra de imediato mudar a lei maior: as vedações superiores destinam-se justamente ao legislador decorrente e não são eficazmente contornadas por mera reinterpretação do conjunto léxico. Quais seriam tais dispositivos, então?

Preocupada com a consistência intergeracional e atenta ao nosso conhecido padrão de soluços de crescimento, entrecortados por crises de endividamento, a Constituição se mostra bem atenta à sua missão financeira. Por exemplo, ao art. 165, §2º temos o princípio geral da sustentabilidade da dívida pública (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art165).

Outra regra é aquela que estipula que se, nos últimos 12 (doze) meses, a relação entre despesas correntes e receitas correntes superar 95% (noventa e cinco por cento), ocorre uma série de vedações, que incluem a tomada de operações de crédito (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm#art167a%C2%A76ii).

Ademais, ao art. 52, incisos V a IX, a Constituição Federal investe o Senado Federal na guarda das finanças brasileiras, não somente da União, mas de todos os entes, seja qual forma tal operação adote (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm#art52v). Como ensina o estimado Professor Ayres Britto, prerrogativas deferidas constitucionalmente não se renuncia, pois “[…] implicam o desfrute de condições especialmente propiciadoras do melhor desempenho possível das competências […] adjudicadas” (https://editoraforum.com.br/noticias/o-regime-constitucional-dos-tribunais-de-contas-ayres-britto/). Vale dizer, de qualquer forma o Senado Federal deve ser informado, senão diretamente, indiretamente.

CONCLUSÃO – CUIDADOS QUE NÃO CONSTAM NA LEI

Ousando um arremate para tudo o que veio acima – e aceitando o risco de que o leitor visite tão somente esta seção – acredito que a vontade expressa na Lei Complementar se impõe e é efetiva para aproximar o Brasil das técnicas mais avançadas de financiamento e da experiência internacional. Essa modernização, no entanto, não se faz sem uma releitura e sem uma reconciliação com o Direito Financeiro.

Quanto aos justos cuidados de que a lei já dispõe, outras publicações já as analisaram suficientemente e, de qualquer modo, estão prontas à leitura no corpo principal do normativo. O desafio a que nos propusemos aqui foi o de relacionar cuidados outros, que não estariam ali. Ocorrem-me os seguintes seis.

  1. O manejo da dívida deve contemplar sua própria sustentabilidade, principalmente devido ao fato de que, a par de representar um ingresso imediato que vincula uma série de desembolsos (ou de não ingressos) ao longo do tempo, não altera nem prejudica as participações eventualmente devidas nos momentos em que efetivamente devidas, sejam os dos honorários da advocacia pública, sejam duodécimos de órgãos públicos, sejam os percentuais de saúde e educação, sejam quaisquer outros. A operação deve estimar e estar consciente desse cronograma de obrigações, bem como a contabilidade deve estar pronta para bem evidenciá-lo e controlá-lo.
  2. A contabilidade também deve ser adaptada à efetividade da Resolução SF 43/2001, na redação que lhe foi conferida pela Resolução SF 17/2015. Possivelmente essa adaptação envolva uma alteração do Anexo 2 – Demonstrativo de Dívida Consolidada Líquida – para que ali se anote o total contratado pendente. Assim se deve proceder, nem que a título de mera nota explicativa (https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/cosis/manuais/mdf).
  3. Os custos da transação, de avaliação dos ativos e de elaboração da oferta são consideráveis, o que sugere que somente devem recorrer à securitização entes maduros, com receita tributária relevante, e com uma estrutura de custeio financeiro mais sofisticada, não sendo a cessão onerosa de recebíveis sua primeira opção de funding. Nesse sentido, ao menos para municípios, parece fazer mais sentido que, em havendo conveniência e motivação suficientes, devam simplesmente aderir a operações processadas pelos Estados para a dívida confessada e parcelada do ICMS, tais como as emissões da CPSEC. O art. 158, IV, “a” de nossa Constituição estipula que 25% de tais receitas pertence originalmente às municipalidades, viabilizando a parceria mencionada, com a vantagem do aproveitamento da estrutura e credibilidade do Estado. A própria CPSEC poderia vislumbrar tal possibilidade em emissões futuras, modernizando-as para contemplar tal possibilidade de tal adesão.
  4. Indicadores usuais de sofrimento financeiro não devem ser negligenciados, constituindo sinalização relevante para que a operação seja repensada, melhor motivada ou mesmo evitada. Por exemplo, a extrapolação do limite global de endividamento de que trata a Resolução SF 40/2001, ou o comprometimento de mais de 95% da receita corrente com a despesa corrente nos últimos doze meses.
  5. Embora a Lei condicione a concretização da operação nos últimos 90 dias do mandato (Lei 4320/1964 art. 39-A, §1º, VII), esse prazo parece pequeno para inspirar os cuidados que pretende. A parcimônia sugere que todo o ano do pleito eleitoral, não apenas os últimos 90 dias, seja tomado com redobrado cuidado para a conclusão de tais operações. Em qualquer momento de sua conclusão, deve-se ter em mente o horizonte temporal adequado à alternância eleitoral.
  6. Embora a Lei não tenha reproduzido o cuidado da norma paulista, parece adequado que a colocação no mercado se processe sem deságio, ou seja, que seja lavrada pelo valor do saldo atualizado do parcelamento, excluídos juros e demais acréscimos típicos das parcelas vincendas (art. 3º da Lei 13723/2009 https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2009/lei-13723-29.09.2009.html). Em assim procedendo, a apuração de economicidade da oferta poderia ser objetivamente realizada observando-se as taxas de administração e de desconto efetivamente praticadas.

Enfim, a compatibilização entre inovação e responsabilidade fiscal excede a mera observância literal e mecânica da lei; impõe uma análise atenta dos impactos intertemporais, da sustentabilidade do endividamento e da transparência contábil. Em última instância, a eficácia desse mecanismo dependerá não apenas da vontade normativa, mas também da maturidade institucional dos entes federativos e da vigilância dos órgãos de controle, de modo a assegurar que o avanço técnico não se perca, nem dissimule risco fiscal.