Historicamente, um dos recursos utilizados pelas oligarquias para o exercício, usufruto e perpetuação de suas posições no aparelho estatal é o chamado “poder da caneta”. Graças a ele, os amigos do detentor da caneta eram privilegiados enquanto os seus adversários ou os que não se alinhavam a esquemas, eram ignorados, preteridos ou perseguidos.
De certa forma, a evolução da democracia brasileira e de nossas instituições republicanas pode ser vista como uma luta incessante para reduzir o poder da caneta e fazer prevalecer princípios democráticos como os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A realização de concursos públicos democratizou o acesso ao serviço público e reduziu a prática secular de nomear “amigos do rei” para cargos de magistratura, magistério, fisco etc.
O estabelecimento de normas tributárias e financeiras, com força constitucional, reduziu o arbítrio na cobrança e na não-cobrança de impostos e taxas, bem como na aplicação dos recursos arrecadados que deve obedecer às leis orçamentárias e de responsabilidade fiscal.
Outro campo dessa batalha incessante entre o patrimonialismo e a República são as contratações da administração pública e os pagamentos delas decorrentes. Até pouco tempo, não eram incomuns situações em que se contratavam apenas os que comungavam da mesma aliança política dos contratantes ou com eles partilhavam seus ganhos. Em outra modalidade, a contratação se dava de forma imparcial, mas só recebiam por seus produtos e serviços aqueles que aceitavam determinadas condições, não explicitadas nos editais, mas exigidas pelos “donos da caneta”.
De modo a minimizar o problema e assegurar o direito dos contratados, a Lei 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações e Contratos – NLL, buscou aprimorar um mecanismo originado na anterior Lei 8.666/1993: a ordem cronológica da exigibilidade de pagamentos. A ideia é simples: na medida em que os contratados cumprem as suas obrigações e comprovam o direito de receber os respectivos valores, a chamada liquidação da despesa, passam a formar uma “fila”. Ao efetuar os pagamentos, o gestor público não pode bagunçar essa fila, privilegiando uns em detrimento de outros. É obrigado a seguir a ordem cronológica.
Tem mais: essa fila não é secreta, pois cada órgão público deve disponibilizar, mensalmente, em seção específica de acesso à informação em seu sítio na internet, a ordem cronológica de seus pagamentos.
Existem algumas regras que visam dar praticidade ao processo. Primeiro: haverá uma fila por cada fonte diferenciada de recursos. Por exemplo, pagamentos relativos a transferências do SUS estão numa fila diferente dos de receita própria do órgão. Segundo: para cada fonte de recursos, haverá uma ordem cronológica para as seguintes categorias de contratos: fornecimento de bens; locações; prestação de serviços; e realização de obras.
Assim como nos bancos e supermercados existe um atendimento preferencial a gestantes e idosos, a NLL também prevê hipóteses excepcionais de alteração na ordem cronológica como, por exemplo, para o pagamento a microempresa, empresa de pequeno porte, agricultor familiar, produtor rural pessoa física, microempreendedor individual e sociedade cooperativa, desde que demonstrado o risco de descontinuidade do cumprimento do objeto contratual. Tais hipóteses exigem mediante prévia justificativa da autoridade competente e posterior comunicação ao órgão de controle interno da Administração e ao tribunal de contas, além de serem divulgadas na internet.
A inobservância imotivada da ordem cronológica de pagamentos ensejará a apuração de responsabilidade do agente responsável, cabendo aos órgãos de controle a sua fiscalização, sendo que o pagamento de fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade passou a ser considerado crime, tipificado no art. 337-H do Código Penal, punido com reclusão, de quatro a oito anos, e multa.
Para a NLL, a fila de pagamentos é republicana e democrática. Viva a fila e abaixo a caneta!
Luiz Henrique Lima é professor e Auditor Substituto de Conselheiro do TCE-MT.