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Governança pública e privada – por Luiz Henrique Lima

Em recente debate, fui indagado sobre diferenças e semelhanças entre a governança de organizações públicas e a de corporações privadas. Alguns CEOs presentes questionavam até que ponto a experiência na gestão pública poderia ser relevante para a gestão privada. A formulação embutia um certo viés preconceituoso contra os gestores públicos, devido, em boa medida, ao desconhecimento dos desafios e limitações que esses sofrem na sua atuação. Iniciei minha réplica, reconhecendo as múltiplas diferenças nas circunstâncias e pressões enfrentadas por lideranças dos setores público e privado e nos instrumentos à sua disposição para enfrentá-las. Prossegui comentando os princípios da governança corporativa, tais como apresentados no Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa do IBGC. São eles: integridade, transparência, equidade, responsabilização (accountability) e sustentabilidade. Ponderei que o executivo de uma organização pública também está submetido a todos esses princípios. A responsabilização se materializa no dever constitucional de prestação de contas e na fiscalização exercida pelos controles externo, interno e social. A transparência envolve exigências legais, bem mais rigorosas para o setor público. Por exemplo, as empresas privadas não expõem na internet a remuneração de seus dirigentes ou a relação de seus fornecedores. A integridade dos gestores públicos é permanentemente fiscalizada pela imprensa, pelo Ministério Público e pela sociedade. Observar a equidade na administração pública é consequência dos direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição. E a sustentabilidade, como pilar da gerência dos negócios públicos, deriva dos objetivos fundamentais da República. Na sequência, respondi a outra objeção muito comum: o executivo público não é cobrado pelos resultados que entrega. É um equívoco. A avaliação dos resultados de políticas públicas é uma exigência constitucional. Se na empresa privada o dirigente deve garantir valor para os acionistas e demais stakeholders, na área pública as cobranças também são intensas, pois, a rigor, toda a sociedade tem o direito de exigir que a aplicação de recursos públicos assegure o bem comum. Outra analogia interessante diz respeito ao ambiente concorrencial. Na área privada, os dirigentes se preocupam com a concorrência tradicional no seu nicho de mercado e com a inovação disruptiva que pode tornar obsoletos produtos e marcas até então dominantes e consagrados. No setor público, a concorrência se dá no campo da competição política. No ambiente democrático, líderes e blocos políticos que não atendem às expectativas de seus eleitores são derrotados e substituídos por outros, que, por sua vez, precisarão apresentar realizações no curso de suas gestões. Como nas corporações privadas, os melhores gestores públicos são testados a tomar decisões difíceis em crises políticas, institucionais e financeiras. De igual modo, enfrentam conflitos trabalhistas e duras negociações judiciais e extrajudiciais e necessitam liderar e motivar equipes heterogêneas em tempos de incerteza. Dito isso, repito que é evidente que são muitas as especificidades que distinguem a gestão das organizações públicas e privadas. Aliás, mesmo no interior do setor público, há distinções muito significativas entre o exercício da liderança numa organização militar e numa universidade, ou entre a direção de uma fábrica de vacinas e a de uma agência regulatória e assim por diante. Da mesma forma, no setor privado, conduzir uma rede varejista exige habilidades diferentes das requeridas para uma startup em inovação tecnológica. Porém, o ponto que propus enfatizar é: existem competências (resultantes de conhecimento, habilidade e atitude) que podem ser adquiridas na gestão pública e ser de grande utilidade para o exercício de funções relevantes na governança corporativa privada, como em conselhos de administração e consultivos: negociação, comunicação, visão sistêmica, planejamento estratégico, escuta ativa, comunicação e liderança. Superar visões enviesadas pode abrir a oportunidade para grupos privados, tanto empresas de capital aberto como negócios familiares, contarem com a experiência de líderes forjados na gestão pública.   Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT e professor.

Linguagem simples – por Luiz Henrique Lima

Nas sociedades humanas, o domínio da linguagem sempre foi uma questão central na disputa do poder. Em nossa evolução como espécie, um marco decisivo foi o desenvolvimento da comunicação entre os indivíduos: primeiro por sinais, depois verbal e finalmente escrita. Desde os desenhos nas paredes das cavernas aos emojis nas mensagens em redes sociais, a criatura humana desenvolveu um complexo sistema de códigos e símbolos para se comunicar. E desde sempre, ao longo de milênios, o domínio sobre esses códigos e símbolos foi um instrumento tanto de dominação como de resistência. Os colonizadores usavam o seu idioma para que suas conversas não fossem compreendidas pelos escravizados e as línguas nativas de povos colonizados eram proibidas pelo seu potencial subversivo. Um líder gigante como Nelson Mandela, assim que aprisionado, obrigou-se a aprender africâner para comunicar-se com os seus carcereiros. O controle do acesso a determinadas obras, consideradas sagradas e/ou secretas, também desempenhou importante papel em sociedades em que a religião era o sustentáculo do poder. Somente sacerdotes de alta hierarquia eram admitidos ao seu conhecimento e detinham assim o monopólio à interpretação das “palavras de Deus” ou mesmo comunicação direta com as entidades divinas. Desta forma, as suas determinações eram incontestáveis, pois supostamente emanadas de um poder sobre-humano. A utilização na linguagem cotidiana de determinadas palavras também denota a reprodução de valores ideológicos e políticos. São conhecidos os exemplos do emprego, por parte de extremistas, de expressões de cunho misógino, racista, homofóbico ou de alguma outra forma preconceituoso. Nada há de inocente ou engraçado (“era brincadeira, gente”) na seleção desses vocábulos. Ao contrário, há nela um objetivo explícito de afirmar valores discriminatórios e de humilhar e constranger os seus alvos. Aliás, a linguagem abusiva é reconhecida componente de situações de assédio moral e sexual. Para conhecer melhor o tema, recomenda-se o estudo da semiótica de Umberto Eco, da teoria da ação comunicativa de Habermas ou, ainda, das obras de Chomsky e Paulo Freire. Por todo o exposto, é importante registrar e saudar a recente Recomendação 144/2013 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ que recomenda aos Tribunais que implementem o uso da linguagem simples, clara e acessível, com o uso, sempre que possível, de elementos visuais que facilitem a compreensão da informação. O CNJ considera a linguagem como meio para a redução das desigualdades e a necessidade de que os cidadãos e cidadãs tenham acesso fácil, entendam e consigam utilizar as informações produzidas pelos órgãos do Poder Judiciário. De fato, hoje, para o leitor não especializado na área jurídica, inúmeras decisões e comunicações de juízes, conselhos e tribunais são absolutamente herméticas e demandam considerável esforço interpretativo, às vezes gerando conclusões contraditórias ou ambíguas, comprometendo ou retardando a sua própria executoriedade. Na realidade, desde 2017, o inciso XIV do seu art. 5º da Lei 13.460 dispõe que é direito dos usuários dos serviços públicos serem atendidos em linguagem simples e compreensível. A Recomendação CNJ 144/2013 é inovadora e positiva e sua imediata implementação deve merecer atenção prioritária de toda a sociedade.   Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT e professor.