Artigos

Linguagem simples – por Luiz Henrique Lima

Nas sociedades humanas, o domínio da linguagem sempre foi uma questão central na disputa do poder. Em nossa evolução como espécie, um marco decisivo foi o desenvolvimento da comunicação entre os indivíduos: primeiro por sinais, depois verbal e finalmente escrita. Desde os desenhos nas paredes das cavernas aos emojis nas mensagens em redes sociais, a criatura humana desenvolveu um complexo sistema de códigos e símbolos para se comunicar. E desde sempre, ao longo de milênios, o domínio sobre esses códigos e símbolos foi um instrumento tanto de dominação como de resistência. Os colonizadores usavam o seu idioma para que suas conversas não fossem compreendidas pelos escravizados e as línguas nativas de povos colonizados eram proibidas pelo seu potencial subversivo. Um líder gigante como Nelson Mandela, assim que aprisionado, obrigou-se a aprender africâner para comunicar-se com os seus carcereiros. O controle do acesso a determinadas obras, consideradas sagradas e/ou secretas, também desempenhou importante papel em sociedades em que a religião era o sustentáculo do poder. Somente sacerdotes de alta hierarquia eram admitidos ao seu conhecimento e detinham assim o monopólio à interpretação das “palavras de Deus” ou mesmo comunicação direta com as entidades divinas. Desta forma, as suas determinações eram incontestáveis, pois supostamente emanadas de um poder sobre-humano. A utilização na linguagem cotidiana de determinadas palavras também denota a reprodução de valores ideológicos e políticos. São conhecidos os exemplos do emprego, por parte de extremistas, de expressões de cunho misógino, racista, homofóbico ou de alguma outra forma preconceituoso. Nada há de inocente ou engraçado (“era brincadeira, gente”) na seleção desses vocábulos. Ao contrário, há nela um objetivo explícito de afirmar valores discriminatórios e de humilhar e constranger os seus alvos. Aliás, a linguagem abusiva é reconhecida componente de situações de assédio moral e sexual. Para conhecer melhor o tema, recomenda-se o estudo da semiótica de Umberto Eco, da teoria da ação comunicativa de Habermas ou, ainda, das obras de Chomsky e Paulo Freire. Por todo o exposto, é importante registrar e saudar a recente Recomendação 144/2013 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ que recomenda aos Tribunais que implementem o uso da linguagem simples, clara e acessível, com o uso, sempre que possível, de elementos visuais que facilitem a compreensão da informação. O CNJ considera a linguagem como meio para a redução das desigualdades e a necessidade de que os cidadãos e cidadãs tenham acesso fácil, entendam e consigam utilizar as informações produzidas pelos órgãos do Poder Judiciário. De fato, hoje, para o leitor não especializado na área jurídica, inúmeras decisões e comunicações de juízes, conselhos e tribunais são absolutamente herméticas e demandam considerável esforço interpretativo, às vezes gerando conclusões contraditórias ou ambíguas, comprometendo ou retardando a sua própria executoriedade. Na realidade, desde 2017, o inciso XIV do seu art. 5º da Lei 13.460 dispõe que é direito dos usuários dos serviços públicos serem atendidos em linguagem simples e compreensível. A Recomendação CNJ 144/2013 é inovadora e positiva e sua imediata implementação deve merecer atenção prioritária de toda a sociedade.   Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT e professor.

A vida não vota – por Luiz Henrique Lima

Recentemente fui convidado a ministrar a aula inaugural do curso de Doutorado em Direito da Universidade de Caxias do Sul – UCS em Bento Gonçalves. Foi uma imensa honra, especialmente porque nem formação acadêmica em Direito possuo, sendo oriundo do campo das Ciências Econômicas. E o objeto da aula foi exatamente a tensão entre essas duas áreas do conhecimento, sendo o título “Direito ambiental e Economia: impasses políticos, desafios teóricos e caminhos possíveis”. Como sempre, os momentos mais interessantes, enriquecedores e inteligentes na sala de aula têm como protagonistas os alunos, ao formularem os seus questionamentos e reflexões críticas sobre o conteúdo apresentado. São as suas perguntas que impulsionam os professores a se esmerarem nas explicações. E são as suas dúvidas que desbravam o caminho para o progresso da ciência. Assim também naquela gélida e chuvosa noite de inverno na Serra Gaúcha. Após ter apresentado algumas situações em que a força de interesses econômicos conflita – e quase sempre triunfa – com princípios do direito ambiental estabelecidos em lei, protegidos constitucionalmente e amparados em compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, fui indagado por uma aluna sobre o porquê da fragilidade político-parlamentar das causas ambientais, fenômeno observado desde as câmaras municipais ao Senado. E a resposta com quatro palavras dá o título a esse artigo. A vida não vota. Não votam as águas dos igarapés e corixos com sua rica fauna aquática, Votam os garimpeiros que neles ilegalmente despejam mercúrio para acelerar a extração de minérios. Não votam os bugios, os tuiuiús, as jaguatiricas, as capivaras e as ariranhas. Não votam as samaúmas, as castanheiras, os mognos e as piúvas. Votam os grileiros, os desmatadores, os que usam motosserras, correntões e incêndios criminosos para derrubar florestas. Não votam as gerações vindouras que suportarão as consequências das insanidades do passado e do presente. A biodiversidade não patrocina campanhas eleitorais; mas a indústria da destruição ambiental sim: elege bancadas, articula lobbies, promove cortes orçamentários e sucateamento nos órgãos de gestão ambiental e depois patrocina matérias denunciando sua lentidão e ineficiência. A vida não vota. Mas o meio ambiente cobra implacavelmente as opções pela necropolítica adotadas por legisladores, gestores e empresas. Aí estão os alertas dos eventos climáticos extremos que se multiplicam pelo planeta e nas últimas semanas afetaram de formas distintas todo o Brasil. Enquanto pautas antiambientais são aprovadas nas casas legislativas em regime de urgência, o estado de emergência ambiental e climática vai alcançando do Pampa à Amazônia. A vida não vota. Mas nós, sim. No dia em que aprendermos a votar pela vida, a vida será melhor. Que esse dia não tarde. Em tempo: minha homenagem a todos os colegas professores pelo seu dia. Recebam a calorosa gratidão e admiração de quem já ostentou outros títulos; nenhum, porém, tão nobre quanto o de professor.   Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT e professor.

Pink Floyd e a Serra da Saudade – por Luiz Henrique Lima e Cinara de Araújo Vila

Os acordes de ‘Time’, megassucesso do Pink Floyd, foram ouvidos nas pacatas esquinas da mineira Serra da Saudade, o menor dos municípios brasileiros, com 833 habitantes, na bacia do rio São Francisco. ‘Time’ é a música mais consagrada do álbum ‘The Dark Side of the Moon’, um dos quatro mais vendidos de todos os tempos, em todos os gêneros, superando os Beatles, Rolling Stones, Elvis Presley, U2 etc. Uma hora, ‘Time’ tinha que chegar em Serra da Saudade. ‘Time’ é uma obra-prima do rock progressivo e conta a história de um jovem que desperdiça seu tempo de forma aleatória, até que um dia se dá conta de que o tempo perdido não pode ser recuperado. Então corre desesperado, mas o tempo corre mais acelerado porque ele já não é mais tão jovem e tem menos fôlego. Perdeu a hora da partida e nunca encontra tempo para fazer o que precisa ou gostaria. A harmonia da letra com a combinação de guitarra, baixo, bateria, teclados e arranjos vocais é simplesmente perfeita, revolucionária para a época (1973) e encantadora até hoje. Sugerimos que coloque a música para tocar enquanto lê o restante do artigo. Nosso tema é a transformação digital nos municípios brasileiros. A transformação digital é um imperativo para a modernização de governos e otimização da entrega de serviços à população. Em particular nos municípios, uma postura proativa na formulação de políticas públicas propicia aos governos antecipar-se a desafios urbanos, sociais, ambientais e econômicos específicos, garantindo uma resposta ágil e eficiente, fornecendo soluções antes mesmo de serem solicitadas e com isso otimizando recursos. Por sua vez, o uso estratégico de dados potencializa essa capacidade de antecipação, transformando o poder público municipal em uma entidade mais preditiva e menos reativa. Atenção: não se trata da digitalização dos serviços públicos, mas de sua transformação digital, o que pressupõe um novo desenho do serviço público, com foco no cidadão. E mais: uma gestão não apenas centrada no usuário, mas por ele conduzida. O conceito de “governo como plataforma” também se destaca, indicando uma necessidade de os municípios se abrirem para cocriações com a sociedade. A digitalização não deve ser apenas um processo de transferência do analógico para o digital, mas um repensar estratégico de como os serviços são fornecidos e como podem ser otimizados. Ao considerar  as tecnologias digitais desde a concepção de políticas públicas (digital by design), o governo pode repensar e simplificar seus processos. Isso gera uma administração mais eficiente, sustentável e cidadã. O envolvimento ativo dos cidadãos, empresas, associações e outras organizações na definição de suas necessidades transforma a elaboração de políticas e serviços públicos e oportuniza governos mais alinhados às reais demandas da população. Tal abordagem fomenta a inovação e privilegia a transparência, dois pilares do governo digital.  A transparência deve ser acompanhada da simplificação, com a utilização de linguagem simples, abominando o juridiquês e tecnicismos para tornar-se de compreensão mais fácil, imediata e precisa pelos cidadãos. O hermético e o complicado são selos do paradigma patrimonialista, do governo de poucos e para poucos. A transparência não consiste apenas em propiciar o acesso à informação, mas em definir a abertura de dados como padrão (open by default). Comprometendo-se com a divulgação proativa de dados em formatos abertos e tornando seus processos acessíveis por meio das tecnologias digitais, os governos reforçam a sua transparência e confiabilidade Assim, a transformação digital implica numa melhor comunicação entre governo local e cidadãos, com o potencial de alterar profundamente o funcionamento do setor público. Sua aplicação promete um governo mais conectado, transparente, tempestivo e eficiente, atendendo melhor às demandas e desafios contemporâneos. Essa revolução já está acontecendo em muitas cidades. Vai chegar em Serra da Saudade – MG e também no seu município, caro leitor. Mas quando? Quem não constrói hoje o seu próprio futuro digital será obrigado a suportar o pior do passado analógico. Estará, como o personagem de ‘Time’ do Pink Floyd, condenado a correr e correr e só ver aumentar o atraso em relação aos líderes.   Luiz Henrique Lima é Doutor em Planejamento Ambiental e professor. Cinara de Araújo Vila é Mestre em Indústria Criativa, procuradora municipal de Novo Hamburgo e finalista do Prêmio de Inovação Judiciário Exponencial 2023.

O fetiche do PIB – por Luiz Henrique Lima

Vivemos sob o fetiche do PIB. Esse fetiche nos fascina, nos governa, nos ilude e nos atrasa. Esse fetiche perpassa diversas gerações, ideologias políticas, crenças religiosas e preferências clubísticas. Como os dicionários definem a expressão fetiche? Fetiche: substantivo masculino, objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta a culto; Fetiche: objeto inanimado ou parte do corpo considerada como possuidora de qualidades mágicas ou eróticas. Basta folhear as manchetes dos principais veículos de comunicação do país, em qualquer dia de qualquer semana, que lá encontraremos o “culto” a esse “objeto inanimado” ao qual se atribui “poder sobrenatural ou mágico”. São especialistas que se debruçam sobre projeções do PIB futuro. São analistas que tentam explicar a trajetória do PIB passado. São líderes políticos procurando convencer a opinião pública que são mais capazes que outros “para fazer o PIB crescer”. São dirigentes empresariais impondo condições de investimentos, juros, produção e empregos em função do melhor ou pior desempenho do PIB. E os títulos jornalísticos alimentam o grande fetiche. Há poucos dias um dos maiores jornais do país estampou na primeira página: “Ministro da Fazenda se encontra com o PIB para discutir reformas”. Pronto. O que era um mero conceito de contabilidade ou agregado macroeconômico encarnou, tornou-se um ser vivo que merece ocupar a agenda do ministro em “encontro”, de natureza pessoal, talvez até romântica… Sem esquecer uma antiga dirigente da República que certa vez declarou sonhar com “um Pibão bem grandão”. Mas afinal de contas, o que é o Produto Interno Bruto – PIB? De acordo com os melhores manuais da ciência econômica, o PIB define-se como a soma dos seguintes agregados: salários, juros líquidos pagos a indivíduos, aluguéis pagos a indivíduos, lucros distribuídos, depreciações, lucros retidos e ainda a renda líquida enviada ao exterior. Ou, de outra forma, o PIB é a soma do valor adicionado bruto de todas as unidades produtoras residentes em uma economia, acrescido dos impostos indiretos líquidos de subsídios. Assim, o PIB propicia o conhecimento do valor da riqueza produzida por determinado país em determinado período, possibilitando comparações e apreciações com os resultados de outros países e/ou de outros períodos. E qual é o problema do PIB? O problema não é o PIB, mas o que fazem com ele. Para a cacofonia de políticos, economistas, jornalistas etc., o PIB não é interpretado como é – um instrumento acessório de análise do desempenho econômico – mas fetichizado, como inquestionável medidor do sucesso ou fracasso da política econômica, automaticamente interpretado como sinalizador de desenvolvimento e, transcendentalmente, como indicador da potencial felicidade de um povo ou nação. Ocorre que na composição desse indicador há distorções há muito apontadas pelos estudiosos. Cito três exemplos. Ao se derrubar uma floresta, o PIB cresce. Ao se preservar uma floresta, o PIB mão cresce. Ao internar a sua mãe, idosa e doente, numa clínica de repouso e ir visitá-la uma vez por mês, o PIB cresce. Agora, ao cuidar dos seus pais em casa, a assisti-los todos os dias, o PIB não cresce. Se as forças de segurança invadirem uma favela e três crianças negras morrerem atingidas por “balas perdidas”, o PIB cresce. Agora, se um grupo de voluntários comparecer nessa mesma favela e passar uma manhã lendo livros para as crianças ou ensiná-las a montar a sus própria pipa com o material que está ali disponível, o PIB não cresce. Não é difícil perceber que, apesar de sua utilidade como ferramenta de análise econômica, o PIB está muito longe de ser um indicador de sucesso ou de progresso civilizatório, considerando as dimensões humana, social, ambiental, cultural etc. Sem nos libertarmos do fetiche do PIB, não alcançaremos o desenvolvimento sustentável e inclusivo para todos os brasileiros.   Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT e  professor.

O princípio poluidor vencedor – por Luiz Henrique Lima

No direito ambiental, um dos institutos mais consagrados é o princípio poluidor-pagador – PPP. Referido princípio foi inicialmente introduzido pela Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos – OCDE em 1972 e preconiza que “o poluidor deve suportar a totalidade dos custos de prevenção e de luta contra a poluição”. Posteriormente, foi incorporado à Agenda 21 das Nações Unidas, à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (princípio 16) e à Constituição brasileira. Na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981, art. 4º, VII) isso se traduziu na imposição ao poluidor da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados. De igual modo, outras normas acolheram o PPP. O princípio poluidor-pagador significa que os custos de recuperação do meio ambiente afetado devem ser atribuídos ao poluidor. Assim, os preços devem compreender os custos com a prevenção dos danos ambientais. Cumpre esclarecer que não se trata de admitir a atividade poluidora mediante pagamento, mas de cobrar-se das atividades que poluem de alguma forma o meio ambiente, inclusive quando nos limites e padrões da legislação ambiental. Assim, o objetivo é estabelecer um mecanismo econômico que desestimule a degradação ambiental. De um modo geral, o PPP pode ser aplicado por meio de taxas ou tarifas pela emissão de efluentes, de taxas sobre os produtos poluentes, de sistemas de consignação, da criação de mercados de direito de poluição etc. Entretanto, na maioria dos países, ele é aplicado por meio de regulamentações diretas, na medida em que essas transferem para o poluidor os custos ligados ao respeito às normas ambientais. Porém, nem sempre os legisladores e formuladores de políticas públicas acertam. Ao contrário, sucede de praticarem erros clamorosos que provocam confusão, contradição e efeitos contrários ao que seria desejável. Um exemplo são os critérios de repartição dos recursos arrecadados com a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível – CIDE-combustíveis (Leis 10.336/2001 e 10.866/2004). De acordo, com os padrões vigentes, quanto mais “suja” for a matriz energética de determinado estado ou município, maior será a proporção de recursos que receberá da União. Por exemplo, se um estado ou município tiver na sua matriz de consumo de combustíveis uma elevada participação de gás natural veicular ou de veículos elétricos receberá bem menos recursos do que se o seu consumo fosse integralmente de combustíveis fósseis. Da mesma forma, incentivos bem-sucedidos à utilização de bicicletas, ao transporte solidário e ao transporte público podem provocar perdas de arrecadação para o ente federativo. O que é positivo sob o aspecto ambiental torna-se negativo sob o aspecto fiscal. Há, nesse caso, um incentivo econômico à “carbonização” ou, pelo menos, um desestímulo à adoção de matrizes energéticas de menor impacto ambiental. O mais paradoxal é que o tributo se destina, entre outros, ao financiamento de programas de infraestrutura de transportes e de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás. É uma situação esdrúxula, que contraria as diretrizes da política nacional sobre mudança do clima e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, bem como os esforços para realizar uma transição energética. Na prática, a distorção normativa apontada é a aplicação de um princípio “poluidor-vencedor”, anticonstitucional e antiambiental. Aguarda-se a adoção de providências corretivas por parte de legisladores, administradores e reguladores.   Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT, professor e escritor.

Aplausos de pé para o STF – por Luiz Henrique Lima

Sim, leitores, esse título tem a explícita intenção de ser provocativo. Em momento de tanta polarização política e ideológica e diante do incomum protagonismo com que o Supremo Tribunal Federal – STF tem exercido suas atribuições, uma simples menção favorável a alguma decisão pode por si só provocar desconfiança e irritação em alguns setores. Corro o risco de ser acidamente criticado sem que sequer tenha sido lida a primeira frase deste artigo. Mas essa provocação, leitores, não é gratuita. Ao contrário, há algum tempo proclamo a necessidade de construirmos alguns consensos básicos na sociedade brasileira. Consensos que consigam ultrapassar as trincheiras ideológicas, as opções político-partidárias, as crenças religiosas e as preferências clubísticas. Sem uma plataforma comum de valores e princípios, em breve estaremos esfacelados, a exemplo do que ocorre em outros países, em que diferentes nações inimigas, incapazes de dialogar, coabitam e disputam um mesmo território. Não é o que desejamos para o Brasil. Evidentemente, não se alimenta a ilusão da unanimidade. Sempre haverá extremistas de diversas procedências, cuja matriz de profunda intolerância incapacita para a convivência pluralista. Contudo, creio que alguns consensos são possíveis: amplos, no sentido de envolverem múltiplos aspectos da vida social; e robustos, à medida que logram congregar uma expressiva maioria de brasileiros. Em princípio, a base desses consensos é a nossa Carta Constitucional. Por exemplo, temas nela consagrados, como o respeito aos direitos humanos ou a preservação do meio ambiente para as futuras gerações, jamais poderiam ser objeto de questionamentos sérios. No entanto, sabemos que não é assim, lamentavelmente. Apesar de vivermos sob regras democráticas, igualitárias e antipreconceituosas, grande parte de nossos compatriotas ainda não se libertou de uma formação cultural/familiar autoritária, racista, machista etc. Por isso, é de extrema importância destacar fatos e decisões que contribuam para a nossa evolução civilizatória. Assim é que conclamo a todos, sinceramente, a aplaudir de pé a recente decisão do STF, por unanimidade, no julgamento da ADPF 779, que considerou inconstitucional e inaceitável pelos tribunais de júri a tese da “legítima defesa da honra” (masculina) como justificadora ou atenuante da prática de feminicídio. Entendeu a Suprema Corte que referido argumento viola os princípios constitucionais da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero, estimulando a violência contra mulheres e a sua impunidade. Como assinalado no julgamento, a “legítima defesa da honra” é um recurso retórico odioso, desumano e cruel, usado por acusados de feminicídio para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo para a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no país. E ainda: “Não há espaço no contexto de uma sociedade democrática, livre, justa e solidária, fundada no primado da dignidade da pessoa humana, para a restauração de costumes medievais e desumanos do passado, pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso por causa de uma ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina.” Uma decisão histórica, firme, correta, necessária, importante, unânime e positiva. Merecedora de fortes aplausos. Ou não?   Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT, professor e escritor.