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Caso Master: o retrato de Dorian Gray da Previdência Social brasileira, por Alexandre Sarquis

Diversos regimes próprios de previdência social com quase dois bilhões de reais expostos a um único conglomerado financeiro. O caso Banco Master ainda está em apuração, mas um fato silencioso passa despercebido: se o impensável vier, não terá sido apenas a falha de uma Instituição Financeira. Foi também uma sociedade que se recusa a reconhecer a própria face que envelhece. É tentador reduzir o episódio a um enredo de má gestão pontual: um ou outro gestor mais ousado, uma consultoria de investimentos persuasiva demais, um produto financeiro de brilho enganoso. Mas um olhar menos distraído mostra que tudo não passa de fragmentos de um enredo bem mais intrincado. Enquanto Tribunais de Contas soavam toda sorte de alertas – tais como fizeram TCE-SP, TCE-PR, TCE-AP e TCE-RJ – , eram em parte ignorados, sob argumentos de segurança jurídica, de inocorrência de erro grosseiro ou de inexistência jurídica de prejuízo. Em verdade, havia – e há – quem vislumbrasse na conta previdenciária mera abstração de longo prazo, com cancha indefinida para protelar, senão por apenas mais um mandato. No Legislativo, alinham-se projetos que ampliam benefícios, criam novas aposentadorias especiais, ressuscitam vantagens extintas, aliviam contribuições de grupos específicos (PLP 185/2024, PEC 14/2021, PEC 18/2025, PLP 111/2024, PEC 10/2023, PL 196/2020, PL 2709/2022, PL 3387/2019, PL 1126/2021, PL 2607/2023, PEC 6/2024, PEC 76/2019, PL 2531/2021, PEC 37/2022, PL 3024/2020 e PL 317/2022). Em Municípios e Estados, então, são tantos mais projetos quanto é grande o Brasil. Todos eles dotados de relevante impacto atuarial, mas de custo orçamentário imediato quase irrelevante, tornando a decisão politicamente sedutora: hoje, apenas parágrafo na lei, mas, no longo prazo, novo depósito sobre a estrutura já envergada. Sob o ponto de vista administrativo, há notícias de que ao menos algumas consignatárias lograram contornar o consentimento formal de aposentados e pensionistas, muitos deles no crepúsculo da vida e em franco declínio cognitivo, para acantonar débitos nas margens dos contracheques.A gestão de investimentos é manifestação dessa mesma lógica, que se repete. O administrador é surpreendido com o papel que lhe colocam, o de Fausto cogitando a oferta de Mefisto: produtos complexos, estruturas opacas, concentração em poucos emissores, análise superficial de risco, tudo na busca desesperada por alguns pontos percentuais a mais – pontos estes que nenhum fundo de pensão de país que se preze ousaria perseguir. Leis concessivas, esquemas atuariais e balanços previdenciários me lembram Oscar Wilde, escritor irlandês que contou a história de um jovem belo, mas vaidoso, que selou um pacto maldito. Enquanto ele permanecia sempre jovem, quem envelhecia e se degradava era o seu retrato escondido no sótão, que paulatinamente acumulava rugas e deformações, a cada torpeza, crueldade ou covardia praticadas. Os balanços previdenciários são o retrato de Dorian Gray de nossa Previdência Social: na parede, a face jovem, fresca, impecável. Normas que prometem sonhos de justiça social, enquanto os demonstrativos contábeis exibem ativos registrados a valor de face, a despeito da inverossimilhança de sua realização. Rubricas que, ante o medo paralisante de denunciar as decisões de quem investiu, permanecem duras e frias como gatos de porcelana. Enquanto isso, escondido no sótão da demografia e da atuária, outro quadro envelhece, e a sociedade extravia a oportunidade de capitalizar enquanto ainda é jovem.Confiamos demasiado na perenidade de Estados e Municípios, deslumbrados por essa juventude. Mas a máxima segundo a qual o “ente federativo não quebra” é uma crença infundada no dogma civilizatório. O Estado não entra em falência no sentido clássico: não há edital, síndico nomeado ou leilão de ativos. Mas a ruína se traveste em outra experiência: chega na folha de pagamento inflada, que consome todo o ar do orçamento; na falta de caixa para a merenda, para o medicamento, para a segurança pública. É uma outra falência, caótica, sem cartório e sem juiz, com crianças sem aula, filas em hospitais e paralisação do investimento público. O município não desaparece, antes, sobrevive nas sombras daquilo que poderia ter se tornado. Usando dados de 2010, o relatório “Políticas sociais: acompanhamento e análise, v. 1” do IPEA sugere que a necessidade de financiamento da Previdência Social era de 3,33% do PIB. Já o Relatório de Acompanhamento Fiscal da IFI de 11 de março de 2019, anotava um panorama degradado, com despesas com os regimes previdenciários alcançando 13,4% do PIB. E o ponto de inflexão causado pelo bônus populacional ainda está por vir. Não há vento favorável ao marinheiro que não sabe a que porto quer chegar. Precisamos de clareza, para, enfim, decidir. No plano contábil-orçamentário, permitir o registro de toda sorte de promessa de pagamento ou de investimentos podres, sem provisionamentos adequados, como se ativos garantidores fossem, propicia apenas uma ilusão de solvência, ao preço de não capitalizar no período mais favorável e de esconder o verdadeiro ônus futuro dos planos de equacionamento propostos. Adia-se o reconhecimento da perda, alonga-se o calvário e esgota-se o tempo em que ainda seria possível recompor o fundo com menor sacrifício social. Eis o estado da previdência: batem à porta os postulantes importunos, sugerindo novas despesas, novos pareceres, novas contas. Não se limitam a solicitar cargos ou programas, mas oferecem aplicações, técnicas atuariais, contábeis ou jurídicas. Resistir é difícil: a pressão política, o ruído de mercado, o medo de ficar para trás, deixado à sua sorte, o administrador acaba por aderir. E em muitos casos só se faz necessário ceder uma vez. A infraestrutura de governança, sob a liderança dos Tribunais de Contas, precisa assumir cada vez mais a militância da função que lhe empresta o nome, funcionando na capacidade de espelho incômodo. Tribunais de Contas e Ministérios Públicos de Contas, quando exigem provisões integrais para créditos de recuperação duvidosa, quando investigam consultorias de investimento e atuariais, e as autoridades que as patrocinaram, não almejam apagar as canetas. Almejam desfraldar o retrato que o sótão esconde.Talvez ainda haja tempo de reconciliar as duas imagens, mas precisaremos de menos milagre e mais prudência. Contratar prestadores de serviços sérios, independentes e técnicos. Aprovar leis que contemplem seus efeitos atuariais. Tratar balanços previdenciários como diagnóstico, não como… Read more »

Consciência negra e luta antirracista, por Luiz Henrique Lima

No Brasil, o racismo não se limita às sombras da ignorância. Ele se disfarça de protocolo, de preferência estética, de “perfil de cliente”. Está nos olhares que vigiam, nas portas que não se abrem, nas oportunidades que não chegam. No Dia da Consciência Negra, é preciso mais do que registros protocolares: é necessário escancarar as estruturas que sustentam essa desigualdade secular. Como apontei em artigos anteriores (a exemplo de “Onde se aprende o racismo?” e “Cinquenta tons de racismo”), o preconceito não é inato — ele é ensinado, reproduzido e naturalizado desde a infância. Está nos livros escolares que omitem a história de Zumbi e de outros heróis negros, nos brinquedos que ignoram a diversidade, nas piadas que disfarçam agressões. E está, sobretudo, nas práticas cotidianas que negam dignidade à população negra. A recente pesquisa do Instituto DataRaça, em parceria com o Instituto Akatu, revela um paradoxo cruel: os consumidores negros movimentam cerca de R$ 2 trilhões por ano, mas 34,8% relatam ter sofrido racismo ao consumir. Em lojas, shoppings e supermercados, são frequentemente tratados como suspeitos, subestimados ou invisíveis. Nesses ambientes, o racismo é velado — 72% dos casos são difíceis de comprovar ou denunciar. É o que chamei certa vez de “a caça ao jovem negro”: uma vigilância seletiva que transforma o ato de comprar em um campo minado de humilhações. O atendente que oferece automaticamente o produto mais barato, o segurança que segue o cliente pelos corredores, o gerente que presume que o cliente não pode pagar. Quando ainda não era famoso, o consagrado cantor Djavan foi visto como assaltante ao tentar comprar um piano elétrico em uma loja, sendo humilhado e preso por algumas horas após a polícia ser chamada. Como bem disse Emicida, se você é um jovem negro numa cidade brasileira, “o táxi não para, mas a viatura sim”. Tudo isso revela que o racismo não é apenas um preconceito dissimulado — é uma prática institucionalizada. Mas há resistência. A pesquisa mostra que 37,4% dos entrevistados valorizam marcas com postura antirracista, e 24,6% deixaram de consumir em lojas percebidas como racistas. Isso é consciência negra em ação: é o poder de escolha como ferramenta de transformação. É o consumidor/cidadão que exige respeito, representatividade e reparação. Celebrar o Dia da Consciência Negra é reconhecer que o racismo não é um problema entre negros e racistas — é um problema de toda a sociedade. É entender que o combate ao racismo não se faz apenas com discursos, mas com políticas públicas, educação antirracista, inclusão econômica, representatividade política e justiça social. É lembrar que não basta rejeitar o racismo: é preciso enfrentá-lo com postura antirracista. Cumpre saudar iniciativas de alguns Tribunais de Contas sensíveis a este tema, a exemplo – sem a pretensão de ser exaustivo – dos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Pará. Sem dúvida, os órgãos de controle externo podem contribuir muito. Que o 20 de novembro não seja apenas um feriado no calendário, mas um marco na luta por um Brasil onde a cor da pele não determine como uma pessoa será tratada, desde o parquinho infantil até o estabelecimento comercial ou órgão público. Respeito e dignidade para todos, todos os dias! Luiz Henrique Lima é professor e Vice-presidente de Controle Externo da AUDICON.

Eu, você e a COP-30

Eventos diplomáticos internacionais costumam parecer distantes de nossos afazeres cotidianos, dos boletos a pagar e dos múltiplos compromissos profissionais e familiares. A 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP-30, que a capital paraense, Belém, acolherá nas próximas semanas de novembro de 2025, carrega, para muitos, essa aura de burocracia global, palco de discursos grandiloquentes e de promessas que nem sempre se concretizam. Mas esse é um engano fatal. É preciso decodificar o que se passará na Amazônia brasileira. A COP-30 não é um acontecimento exótico; pelo contrário, ela é o cerne da nossa realidade imediata. O que ministros, chefes de estado e negociadores definirem — ou, pior, deixarem de definir — sobre descarbonização, finanças climáticas e proteção de biomas não ficará restrito aos corredores refrigerados dos pavilhões. Cada linha de um acordo, ou cada meta descumprida, afetará diretamente nossas vidas. Pense no seu dia a dia. Se não houver globalmente a redução da emissão de gases do efeito-estufa – o que implica a transição para fontes de energia renováveis e o fim do desmatamento, entre outros – as mudanças climáticas nos alcançarão, direta ou indiretamente, com seus profundos impactos econômicos, sociais e geopolíticos.  Afinal, em 2024, a seca nos rios amazônicos e as inundações no Rio Grande do Sul nos mostraram, com brutalidade, que não há muros que nos separem das consequências do aquecimento global. O clima não é um assunto exclusivo para meteorologistas: ele é transversal, envolvendo infraestrutura, produção de alimentos, migrações e praticamente todas as atividades humanas.   Mas há uma perspectiva ainda mais profunda, que transcende a capacidade e a vontade dos governos e das grandes corporações que estarão presentes em Belém: a ação individual e coletiva dos cidadãos. A dignidade humana depende também das nossas escolhas. Não podemos nos dar ao luxo de terceirizar esta responsabilidade para a esfera pública ou privada e esperar, passivamente, o resultado das negociações. Independentemente do que for (ou não) assinado em Belém, cada um de nós detém um micropoder decisório silencioso, porém cumulativo. Adotar práticas de consumo consciente, buscar o emprego de fontes de energia mais limpas, reduzir o desperdício, valorizar a economia circular e pressionar por transparência e responsabilidade: esses são gestos e exemplos que, multiplicados por milhões, geram impactos globais. Como na fábula do beija-flor que enfrentou o incêndio da floresta carregando gotas d’água no bico: cada ação conta. O futuro do planeta não se decide apenas nas cúpulas. Ele é construído na base: no nosso prato, no nosso transporte, na nossa lixeira. A COP-30 é, portanto, também, eu, você e a urgência de agir. É um espelho que nos convoca a ir além da curiosidade do evento e abraçar o real, o humano e o sustentável em cada microdecisão. Neste século, a (r)evolução civilizatória se expressa pela sustentabilidade cotidiana. Luiz Henrique Lima é conselheiro substituto e vice-presidente de Controle Externo da AUDICON.

“Pintou um clima” na Constituição Cidadã

Setembro nos trouxe, além da primavera, uma novidade constitucional de grande relevância. “Pintou um clima” na nossa Constituição Cidadã. Como assim? Pela primeira vez, a palavra “clima” foi inserida no texto constitucional, por meio da Emenda Constitucional – EC 136, de 9 de setembro de 2025. Com efeito, à época da eleição da Constituinte, em 1986, e de sua elaboração e promulgação em 1988, o debate acerca das mudanças climáticas globais ainda era restrito a um pequeno grupo de cientistas. Foi somente em 1988 que se criou o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC, com a finalidade de promover avaliações científicas multidisciplinares sobre o tema, seus impactos e possíveis estratégias de mitigação e adaptação. E foi no Rio de Janeiro, em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a RIO-92, que foi assinada a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, com o objetivo central de estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera em um nível que evitasse interferências perigosas no sistema climático. Assim, no seu nascedouro, embora contando com um pioneiro e excelente capítulo dedicado ao meio ambiente, nossa Constituição não tratou direta e especificamente da questão do clima, proclamando, no entanto, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (Art. 225). A partir de tais fundamentos, importantes normas foram elaboradas, como as políticas nacionais de recursos hídricos (Lei 9.433/1997), de resíduos sólidos (Lei 12.305/2010) e de mudanças climáticas (Lei 12.187/2009), bem como o sistema nacional de unidades de conservação (Lei 9.985/2000). Com o Decreto 11.349/2023, a Mudança do Clima alcançou status ministerial, mas faltava ainda ser recepcionada na Constituição Cidadã. A lacuna começou a ser suprida pela EC 136/2025, cujo objeto principal é a alteração do Regime Especial de Pagamento de Precatórios pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, bem como o estabelecimento de novo prazo de parcelamento especial de débitos desses entes com os seus regimes próprios de previdência social e dos Municípios com o Regime Geral de Previdência Social. A novidade é que foi inserido no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a possibilidade de utilizar superávits financeiros de fundos públicos municipais para o financiamento de políticas públicas locais de saúde, educação e adaptação às mudanças climáticas (§2º do art. 76-B do ADCT). Ademais o art. 5º da EC 136/2025 prevê que durante os exercícios de 2025 a 2030, até 25% (vinte e cinco por cento) do superávit financeiro das fontes de recursos vinculados dos fundos públicos do Poder Executivo da União, apurado ao final de cada exercício, poderão ser destinados a projetos estratégicos relacionados à destinação do respectivo fundo ou ao financiamento reembolsável de projetos relacionados ao enfrentamento e à mitigação da mudança do clima, à adaptação a essa mudança e aos seus efeitos, bem como à transformação ecológica. Na gíria carioca, de onde recolhi o título deste artigo, “pintou um clima” descreve o momento em que um flerte despretensioso repentinamente oferece a oportunidade de um envolvimento mais profundo. Oxalá isso venha a ocorrer em matéria constitucional. Que a presença inaugural e ainda tímida do vocábulo “clima” na nossa Carta Maior seja o prenúncio de um engajamento e comprometimento cada vez maior de toda a nação com a proteção ambiental e a sustentabilidade. Luiz Henrique Lima é Vice-presidente de Controle Externo da AUDICON e Doutor em Planejamento Ambiental (COPPE-UFRJ).

Contabilidade: muito além de registros e relatórios!

Muita gente ainda confunde Contabilidade com escrituração contábil. Nada mais equivocado. A Contabilidade é uma ciência que, ao longo dos séculos, evoluiu junto com o desenvolvimento econômico e tecnológico, especialmente do mercado de capitais e dos modelos de negócios. Ela não se resume a fazer lançamentos e elaborar relatórios contábeis. A Contabilidade moderna abrange, no mínimo, quatro funções fundamentais: a escrituração, sim, mas também as demonstrações contábeis, a auditoria e a análise de balanços (Cunha, 2018). São funções que se complementam. Enquanto a escrituração registra os fatos, as demonstrações organizam e sintetizam os registros para permitir a avaliação da situação econômica e financeira da organização, a auditoria examina sua confiabilidade e conformidade e a análise fornece informações econômicas-financeiras para apoiar a tomada de decisões estratégicas. Além dessas funções básicas, a mensuração e avaliação, planejamento, orçamento, gestão e planejamento tributário, gestão de custos, controle interno contábil, prevenção e detecção de fraudes e irregularidades etc., são funções da Contabilidade, estudadas e/ou exercidas geralmente como funções da Controladoria (Borinellli, 2006; Lunkes et al., 2011; 2013), uma especialização da Contabilidade ou Contabilidade de Gestão. É por isso que soa tão reducionista a forma como a Emenda Constitucional nº 109, de 2023, à Constituição do Estado de Mato Grosso, tratou a contabilidade nos artigos 56-A e 206-A. É verdade que o texto avança ao reconhecer que “as atividades de contabilidade são essenciais à gestão orçamentária, financeira e patrimonial da Administração Pública” (Mato Grosso, 2023, grifei). Mas, o texto o seguinte, que deveria ser um avanço na estrutura conceitual resumiu-se a procedimentos. Isso porque, o texto da proposta original apresentada em 2022 a um grupo de contadores públicos – representantes do CRC/MT – o campo de atuação da Contabilidade era muito mais amplo. Ela destacava o papel da Contabilidade não apenas para registrar, mas também para promover a transparência, a prestação de contas e a fiscalização da gestão fiscal e das contas públicas. Ou seja, reforçava o papel estratégico do contador público na governança pública. Já o texto aprovado em 2023, além de ser prolixo e conter falhas de técnica legislativa, a parte central dos artigos 56-A e 206-A se prendeu a uma visão procedimental. Em vez de ampliar o campo de atuação da Ciência Contábil no setor público, restringiu-a à centralizaçã de registros e à produção de relatórios fiscais. Resultado: um texto sem avanços significativos, que resume as relevantes funções da Contabilidade à escrituração e à produção de relatórios. Essa visão míope é perigosa. A Contabilidade, como ciência e política (legislação), vai muito além disso. Ela garante que a sociedade tenha clareza sobre onde e como o dinheiro público é aplicado, possibilita o controle do patrimônio e dá suporte às decisões que impactam a vida da população. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal e o Decreto nº 10.540/2020 sinaliza que a contabilidade é instrumento de transparência da gestão fiscal, prestação de contas e responsabilização e apoio à tomada de decisão. Contudo, a primeira parte daqueles dispositivos constitucionais tem o condão de vincular os Poderes Legislativos e Executivos quanto a necessária atuação do contador público nas atividades e sistemas de planejamento/orçamento e de administração financeira do Estado e dos municípios mato-grossenses. Sendo assim, o projeto de lei estadual que vier a organizar esses sistemas dever conter dispositivos que assegure a atuação dos profissionais da contabilidade nesses sistemas. Se o texto constitucional não reflete integralmente essa visão, cabe aos profissionais, entidades da classe contábil e os Conselhos de Fiscalização da Profissão Contábil, empreender esforços junto aos Parlamentos federal e estadual para corrigir esse rumo. É preciso lutar por uma legislação mais clara e efetiva, que valorize a Contabilidade no setor público e reconheça o papel estratégico do contador na governança do Estado e dos municípios mato-grossenses. Por fim, Contabilidade não é, e nunca será, apenas escrituração. Ela é a linguagem das finanças públicas e a espinha dorsal do controle dos atos de gestão subjacentes, da transparência, da prestação de contas, da gestão fiscal responsável das instituições públicas. Sem dados e informações contábeis, não há governança, gestão e controles públicos eficazes. Isaías Lopes da CunhaDoutorando e mestre em Ciências Contábeis, bacharel em Ciências Contábeis e em Direito, e Auditor Substituto de Conselheiro do TCE-MT Referências:BORINELLI, M. L. Estrutura básica conceitual de controladoria: sistematização à luzda teoria e da prática. 2006. 341 f. Tese (Doutorado em Ciências Contábeis)-Faculdade deEconomia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12136/tde-19032007-151637/publico/Tesemarcioborinelli.pdf> Acesso em: 5 out. 2025. CUNHA, I. L. A Auditoria Contábil Financeira e o Julgamento das Contas Públicas In:Contas Governamentais e Responsabilidade Fiscal: Desafios para o Controle Externo – Estudos de ministros e conselheiros substitutos dos Tribunais de Contas, ed.1. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 249 – 280. LUNKES, R. J.; SCHNORRENBERGER, D. ; ROSA, F. S. Funções da Controladoria: uma análise no cenário brasileiro. Revista Brasileira de Gestão e Negócios, São Paulo, v. 15, n. 47, p. 283-298, abr./jun. 2013. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbgn/a/qpNkP9SLzSCWfrZLKMxt45s/abstract/?lang=pt> Acesso em: 5 out. 2025. LUNKES, R. J.; MACHADA, A. O.; ROSA, F. S.; TELLES, J. Funções da Controladoria: um estudo nas 100 maiores empresas do estado de Santa Catarina. Análise Psicológica, Lisboa, v. 29, n. 2, p. 345–361, 2011. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/262669051_Funcoes_da_controladoria_Um_estudo _nas_100_maiores_empresas_do_Estado_de_Santa_Catarina> Acesso em: 5 out. 2025. MATO GROSSO. Assembleia Legislativa do Estado de Matro Grosso. Emenda Constitucional nº 109, de 26 de abril de 2023. Cuiabá – MT. Disponível em:<https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=445045> Acesso em: 3 out. 2025.

Ecos de Minas, por Luiz Henrique Lima

“Liberdade é o outro nome de Minas Gerais.” A histórica frase de Tancredo Neves ecoou novamente esta semana, no auditório repleto do Tribunal de Contas mineiro. O brado, pronunciado em seu discurso de posse como primeiro governador eleito diretamente pelos mineiros após duas décadas de ditadura, permanece atual e imorredouro. A citação foi lembrada pelo Conselheiro Durval Ângelo, presidente daquela Corte e que presidiu no dia 9 de setembro a solenidade de entrega do Colar de Mérito da Corte de Contas Ministro José Maria Alckmin. Em sua fala, ao rememorar os 90 anos de história do TCE-MG, Durval Ângelo destacou o indissociável liame entre democracia e controle externo, assinalando que a ditadura do Estado Novo chegou a fechar o Tribunal de Contas e a colocar seus membros em disponibilidade, inclusive seu primeiro presidente, José Maria Alckmin, que dá o nome à comenda. Perseguição semelhante alcançou o ministro Thompson Flores do TCU, cujo voto independente apontando graves irregularidades na gestão federal desagradara aos mandatários do regime. Somente com a redemocratização de 1946 é que o TCE-MG pode retomar suas atividades. Hoje, a Corte de Contas mineira desempenha um papel de liderança e vanguarda na sua atuação por políticas públicas de qualidade, com auditorias operacionais, monitoramentos, trilhas tecnológicas de fiscalização e mesas de conciliação. Além disso, está sendo um dos primeiros tribunais do país a contemplar no seu concurso público cotas para pessoas com deficiência, negros, pardos e quilombolas, e também uma cota para pessoas transgênero. Confesso que fiquei honrado e surpreso ao saber que também seria agraciado com o Colar de Mérito, ao lado de algumas das mais eminentes personalidades do mundo jurídico e artístico nacionais. Foi comovido que o recebi, das mãos de um jovem e valoroso colega, o Conselheiro Substituto Telmo Passareli, e na companhia da querida amiga Conselheira Substituta Milene Cunha, presidente da Associação Nacional dos Ministros e Conselheiros Substitutos. A cerimônia foi singela, com poucos discursos, mas de grande densidade. O grande mural do artista Guignard que decora o auditório é uma representação simbólica da cultura, da história e da identidade de Minas Gerais, com suas paisagens típicas— montanhas onduladas, igrejas barrocas, vilarejos e o céu amplo e lírico, além de homens e mulheres simples, trabalhadores e crianças brincando. A obra, uma joia do patrimônio cultural brasileiro, tem no seu centro a imagem de um dos inconfidentes, os primeiros brasileiros que se organizaram contra o jugo colonial, lutando por um país independente e uma república constitucional. Em tempos em que Silvérios reencarnados conspiram com estrangeiros contra a nossa soberania e a nossa democracia, a memória dos inconfidentes despregou-se do mural e contagiou todos os presentes. Após a solenidade e a carinhosa, impecável hospitalidade, sinto-me renovado e impregnado pelo espírito libertário e democrático dos mineiros. Trago em meu coração os ecos de Minas Gerais. Como canta o querido Milton Nascimento em “Paixão e Fé”: “Minas é dentro da gente / E não se tira jamais.” Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto e Vice-presidente de Controle Externo da Audicon.