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Escolas medievais no Brasil, até quando? – por Luiz Henrique Lima

O estudo da História nos permite imaginar a realidade cotidiana de uma escola medieval. Na ausência de energia elétrica, o aprendizado era ditado pela luz natural do sol, pelas fogueiras crepitantes em lareiras ou pela chama de velas e lamparinas. A ausência de água potável corrente significava que o acesso à água dependia de poços ou fontes próximas, muitas vezes carregada em baldes, e sua potabilidade era uma preocupação constante, com elevada incidência de doenças. Por sua vez, a inexistência de banheiros resultava na utilização de latrinas simples, muitas vezes buracos no chão, ou na dependência de áreas externas para as necessidades fisiológicas, o que contribuía para um ambiente com pouquíssima higiene e odores fortes. Por que recordar esse cenário? Porque essa é a triste e vergonhosa realidade que ainda encontramos em nosso país no segundo quarto do século XXI. Quem a denuncia são os dados oficiais, provenientes do Censo Escolar de 2024, a partir de questionários autodeclaratórios das próprias unidades escolares. O Censo Escolar reúne informações de 181.065 escolas brasileiras. Dessas, 6.307 não dispõem de água potável, afetando cerca de 650 mil alunos. Ademais, 5.765 unidades não contam com esgotamento sanitário. Pior: 4.925 escolas não têm sequer um banheiro para atender estudantes, professores e funcionários. Finalmente, 2.532 estão desprovidas de qualquer tipo de abastecimento d’água e 2.209 de qualquer forma de energia elétrica. Onde estão essas escolas? Em todas as regiões e em todos os estados brasileiros, principalmente nas áreas rurais, mas até mesmo nas mais ricas capitais do Sul e do Sudeste. Os dados estão em https://public.tableau.com/app/profile/cnmp/viz/SededeAprender/SededeAprender, compilados pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em parceria com diversas organizações. Estimados leitores, como podemos ser indiferentes e não nos indignarmos com isso? Crianças tentando estudar em escolas sem saneamento? Professores lecionando sem acesso a instalações sanitárias mínimas? Servidores improvisando com baldes d’água para manter um mínimo de higiene? Velas e lamparinas para iluminar as salas de aula? Muitas dessas escolas possuem na sua entrada placas comemorativas de sua inauguração expondo o nome de autoridades responsáveis pela sua construção ou reforma. Será que alguém tem orgulho de ver o seu nome associado a uma escola sem água, esgoto ou banheiro? Alguém poderia argumentar: mas o que você descreve ocorre em uma proporção mínima, considerando o total de 181.065 escolas. Exatamente por isso é que essa é uma situação inaceitável. Trata-se de um problema de dimensão limitada e cuja solução não envolve tecnologia sofisticada ou grandes recursos financeiros. Planejar uma rede de água e esgoto não exige conhecimentos astrofísicos ou de computação quântica. Construir um banheiro bem equipado para uma escola custa uma ninharia diante do que prefeituras e estados despendem na promoção de eventos que duram um dia apenas. E, no entanto, ano após ano, a cada edição do Censo Escolar, tenho publicado artigos semelhantes a este aqui nos mais variados veículos de comunicação, sempre com o mais retumbante insucesso na tentativa de sensibilizar governantes e mobilizar cidadãos para decidir que nenhuma criança brasileira deve estudar numa escola medieval. É impossível formar cidadãos conscientes quando o ambiente escolar comunica descaso. Uma criança que não encontra água limpa para beber ou um banheiro para usar está recebendo, antes de qualquer lição curricular, uma aula de abandono. Essas escolas, caros leitores, não são escolas. São galpões de desrespeito. São monumentos à falência das prioridades públicas. São cárceres de sonhos, onde crianças são ensinadas a se conformar com a indignidade e professores aprendem a pedagogia da sobrevivência. A Constituição Cidadã garante qualidade mínima no ensino. A Estratégia 6.3 do Plano Nacional de Educação trata do programa nacional de ampliação e reestruturação das escolas públicas, por meio da instalação de quadras poliesportivas, laboratórios, inclusive de informática, espaços para atividades culturais, bibliotecas, auditórios, cozinhas, refeitórios, banheiros e outros equipamentos. A Lei 14.172/2021 prevê acesso digital. Sim, 90% das escolas brasileiras já têm acesso a internet, sendo 77% com banda larga, o que torna ainda mais trágico e cruel o tratamento desigual para aquelas em que o básico – água potável, banheiro, luz, dignidade – ainda é negado. Até quando? Este artigo não é uma crítica a gestores A ou B ou X ou Y ou Z. É uma conclamação a que sociedade civil, conselhos escolares, órgãos de controle e, principalmente, nós, cidadãos, expressemos nosso inconformismo e exijamos a imediata e completa resolução do problema. Será um dia feliz aquele em que o Censo Escolar nos revelar que nenhuma escola brasileira submete sua comunidade a condições medievais. Luiz Henrique Lima é vice-presidente de Controle Externo da AUDICON.

Os Comensais da Previdência, por Alexandre Sarquis

Quando li pela primeira vez Machado de Assis, não entendi. Encarei frente a frente, mas não vi o meu rosto. Estava obstruído por um bordado de mil ironias finas e distrações coloridas. Enfim, àquela tenra idade, talvez me faltasse maturidade para investigar “Memórias Póstumas de Brás Cubas” para além do que era indispensável no vestibular da Universidade de Santa Catarina. E de fato poucas lembranças ficaram dessa primeira experiência, mas duas em especial. A primeira: o título de um dos capítulos, uma frase que se acantonou em algum rincão de minha mente. Quando a vi pela primeira vez, me soou um tanto sofisticada, certamente uma figura de linguagem – sagazmente inferira o jovem eu – , mas exagerada, desconjuntada, inadequada para introduzir o quanto seguia no texto. Quando a reli, quase trinta anos depois, surgiu como um choque, pois tudo sempre esteve claro como a alvorada e finalmente consegui experimentar a lição que o mestre tinha tentado da primeira vez, mas que apenas o passar do tempo tratou de ensinar. O nome do título era “O menino é o pai do homem”. Quem diria! Tanto menino, quanto homem – ambos eu mesmo -, pois então: todos esses três eram a mesma pessoa. Hoje esse aforismo me leva a refletir sobre a previdência social. As decisões que adotamos hoje somente produzirão efeitos em uma geração, mas essa próxima geração será, novamente, a nossa mesma, seremos sempre nós, reiterados, cidadãos brasileiros. Agimos como se não fosse, mas o é. Dotamos o Brasil de um sistema político vocacionado a se comportar segundo a máxima de que tudo de relevante se ultima em quatro anos. Nossos políticos e partidos são adestrados por esse horizonte eleitoral, mesmo porque em sua conformidade vicejam ou minguam: só vale o que ocorre no breve ínterim que separa dois pleitos eleitorais. Um estado perigoso de coisas, se concebermos que há um sem-número de atos capazes de trocar bem-estar presente por dificuldades futuras – a juros. Por exemplo, há quem diga que destinar dinheiro à Previdência Social deprime o nível de investimentos. Não consigo reconciliar tal conclusão com o que sei de ciência econômica: acumular ativos garantidores nos planos de custeio é clara e inequivocamente um exemplo do conceito econômico de poupança, uma renúncia do consumo presente em favor de segurança futura. Poupança, de sua vez, arrasta investimentos equivalentes: aumente um e, de lambuja, vem o outro. Poupança pública, é bem verdade, mas poupança. Se o que se deseja afirmar é que o nível geral de poupança é deprimido, talvez porque esse aumento de poupança pública venha às custas de uma redução mais do que proporcional da poupança privada, faz-se necessário provar mais, explicar mais, estudar mais. Essa relação não me parece clara, direta, nem intuitiva. Duvido que a série histórica deponha a favor disso. Ao contrário, fica a impressão de que o que esses teóricos rejeitam não é exatamente o ideário de uma poupança pública, mas dos investimentos que essa renúncia patrocina. Fica a impressão de que o que realmente desejam é outro tipo de “investimento”, mais parecido com gastos comuns e imediatos, que acabam traindo o efeito da poupança originalmente criada. E assim vai-se introduzindo todo tipo de desvio, torniquete e barricada no caminho do Equilíbrio Financeiro e Atuarial e do Custeio Total da Previdência: consignação em folha de empréstimos e outros convênios nos proventos – proventos estes que no passado sempre ensinei tratarem-se de direito fundamental impenhorável; consideração de efeitos financeiros advindos das “gerações futuras” para reduzir o quanto deve ser poupado pela “geração atual” – conceito que já falhou na previdência privada e agora é requentado para a previdência pública; promessa jurídica de retenção desse ou daquele imposto que – calculados a valor presente – autorizariam a conclusão de que não é necessário acumular tanto assim; flutuações e inversões no financiamento da previdência pelas prefeituras – no mais das vezes coincidindo com ano de pleito eleitoral; investimento em instituições financeiras com fluxo de caixa duvidoso – mas conexões políticas certas; reconhecimento – administrativamente ou em juízo – de regras de aposentadoria mais benéficas, com extensões, transições, acúmulos ou majorações de proventos, tudo sem que ao menos se cogite apontar fontes de custeio. É panorama que não escapa à atenção dos Tribunais de Contas do Brasil, entidades responsáveis por aferir se as regras de direito financeiro, administrativo e previdenciário estão sendo observadas. No Tribunal de Contas da União, o Ministro Vital do Rego descreveu a Previdência Social como uma “bomba que não vai parar de explodir”. No Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, o Conselheiro Severiano Constandrade defendeu, conseguiu instalar e agora preside o Projeto Previdência do Setor Público, uma ação conjunta do Instituto Rui Barbosa e da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil. No Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, o Conselheiro Marco Aurélio Bertaiolli determinou auditoria operacional extraordinária para avaliar descontos em folha dos aposentados e pensionistas do Estado e dos Municípios paulistas – algo similar também o Ministro Bruno Dantas exigiu. Precisamos abandonar em definitivo a ideia de que a previdência social é uma boa sorte fugaz, simples benefício sem sacrifício ou uma liberalidade estatal. Ninguém virá ao nosso resgate senão nós mesmos. Enquanto seguimos excessivamente apegados a opiniões, pareceres, portarias e outras interpretações que menosprezam comandos históricos de nossa Constituição Financeira, marchamos ao largo da prova do custeio total e do equilíbrio financeiro e atuarial dos regimes – valores constitucionais desde há muito. Essa situação nos legará uma expansão desenfreada de direitos inconsistentemente inspirados em uma leitura auto absorvida e autista da letra da lei, despreocupada em viver o seu signficado ou de contemplar o seu horizonte. Animamos o status de afilhados de uma “lei pai”, sem nunca aceitarmos verdadeiramente a condição de servidores de uma “lei patrão”. Os comandos constitucionais de responsabilidade financeira e social não devem ficar trancafiados nos asfixiantes cofres da observância formal, sob pena de gozarem de uma juridicidade pálida e insatisfatória, meramente exterior e prejudicialmente distante do fenômeno social. Precisamos pagar… Read more »

Mercado de carbono – inovações e desafios, por Luiz Henrique Lima

A Lei 15.042/2024, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa, representa um marco importante na agenda climática do Brasil. Ao regulamentar o comércio de emissões, o país dá um passo significativo rumo ao cumprimento de compromissos internacionais assumidos no Acordo de Paris, ao mesmo tempo que estabelece um mecanismo econômico eficaz para a transição rumo a uma economia de baixo carbono. A principal inovação da lei está na criação de um mercado regulado de emissões, onde empresas e setores poderão negociar cotas de gases de efeito estufa, dentro de limites estabelecidos por órgãos competentes. Esse sistema, inspirado em modelos internacionais bem-sucedidos, como o da União Europeia, busca precificar o carbono de forma a incentivar a redução de emissões e estimular investimentos em tecnologias mais limpas. Contudo, a implementação do sistema não está isenta de desafios. A definição inicial dos limites de emissões por setor, conhecida como “cap”, exige um equilíbrio delicado. Limites excessivamente rígidos podem sobrecarregar setores estratégicos da economia, enquanto metas pouco ambiciosas comprometem a eficácia do sistema. Além disso, será essencial garantir a integridade ambiental do sistema, estabelecendo mecanismos robustos de monitoramento e fiscalização para evitar fraudes, como o uso indevido de créditos de carbono. Outro ponto de atenção é a necessidade de inclusão social no mercado de carbono. Pequenos produtores e comunidades locais, muitas vezes protagonistas na preservação ambiental, devem ser incorporados como beneficiários potenciais do sistema. Iniciativas que promovam projetos de sequestro de carbono em áreas de reflorestamento e agricultura sustentável podem criar oportunidades significativas para esses grupos, bem como fortalecer a sustentabilidade do sistema. A Lei 15.042/2024 também apresenta um impacto estratégico no plano internacional. O estabelecimento de um sistema nacional de comércio de emissões posiciona o Brasil como protagonista no enfrentamento das mudanças climáticas, potencializando sua capacidade de atrair investimentos estrangeiros e fortalecer a diplomacia ambiental. No entanto, o alinhamento com normas e mercados internacionais será crucial para que o sistema brasileiro opere de forma integrada e competitiva no cenário global. Por fim, o sucesso da lei dependerá de uma governança eficiente, que inclua a capacitação de gestores e dos órgãos de controle interno e externo, a conscientização da sociedade e um compromisso ético por parte do setor empresarial. Como bem demonstrado pelo Manual de Boas Práticas de Governança Corporativa do IBGC, a transparência e a responsabilidade são pilares indispensáveis para a credibilidade de iniciativas inovadoras como essa. Em síntese, a Lei 15.042/2024 pode representar uma nova era na política ambiental brasileira, simbolizando um sólido compromisso com a sustentabilidade ambiental e com o futuro do planeta. Luiz Henrique Lima é Doutor em Planejamento Ambiental e conselheiro independente certificado.

Controle Externo, Acessibilidade, Inclusão e Cidadania, por Luiz Henrique Lima

A acessibilidade transcende a mera adaptação de espaços físicos. Ela é, antes de tudo, um imperativo ético e jurídico que reflete o compromisso de uma sociedade com a dignidade e a igualdade. No Brasil, o controle externo deve desempenhar um papel crucial na promoção da acessibilidade, assegurando que políticas públicas e recursos sejam direcionados para garantir os direitos das pessoas com deficiência. A Constituição de 1988 consolidou a ideia de que o Estado deve atuar como um garantidor de direitos fundamentais, incluindo a promoção da acessibilidade. Sob a égide da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, os Tribunais de Contas têm a missão de monitorar e avaliar a implementação de políticas voltadas à inclusão. No contexto do controle externo, a acessibilidade assume múltiplas dimensões. Primeiramente, há a necessidade de garantir que os próprios órgãos de controle sejam modelos de inclusão. Isso envolve a adaptação arquitetônica de seus prédios, a utilização de tecnologias assistivas em suas plataformas digitais e a capacitação de seus servidores para atender adequadamente pessoas com deficiência. Em segundo lugar, os TCs devem atuar na fiscalização de políticas públicas que assegurem acessibilidade. Afinal, o controle externo é essencial para assegurar o uso eficiente dos recursos públicos. Isso inclui o monitoramento de obras públicas para assegurar a eliminação de barreiras arquitetônicas, bem como a garantia de inclusão nos sistemas educacionais e de saúde. A fiscalização do cumprimento de cotas de emprego para pessoas com deficiência, a exigência de que editais de licitação prevejam normas de acessibilidade e a implementação de indicadores para monitorar a inclusão social são exemplos de como esse papel pode ser exercido de forma efetiva. Outro aspecto relevante é a promoção da acessibilidade digital. Em um mundo cada vez mais conectado, assegurar que os portais públicos sejam navegáveis por pessoas com deficiência é tão fundamental quanto garantir acessibilidade física. Ferramentas como leitores de tela, foco visível e conteúdos em Libras são passos necessários para a inclusão. Ademais, por meio de ações de orientação e capacitação, é possível influenciar gestores a adotar uma postura de inclusão desde a concepção de projetos e políticas públicas. Mediante campanhas de sensibilização é possível e necessário fomentar uma mudança cultural, combatendo atitudes capacitistas e promovendo a valorização da diversidade. O TCU declarou o ano de 2025 como o Ano da Pessoa com Deficiência no Controle Externo Brasileiro. Ao promover a acessibilidade, o controle externo exerce o seu compromisso com a cidadania. É pela acessibilidade que se constrói uma sociedade plenamente democrática, na qual todos têm a oportunidade de contribuir e prosperar. Assim, os Tribunais de Contas tornam-se não apenas guardiões da legalidade, mas também defensores da dignidade humana. Essa é uma luta contínua e essencial. Porque acessibilidade não é privilégio, é direito. E o controle externo tem um papel inalienável na sua garantia. Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT e vice-presidente de Controle Externo da Audicon.

Mulheres e orçamento, por Luiz Henrique Lima

No mês de março celebra-se o Dia Internacional da Mulher. Multiplicam-se os debates e reflexões sobre as lutas e conquistas já alcançadas e sobre a necessidade de aprimorar políticas públicas específicas que assegurem às mulheres condições de exercerem seus direitos individuais, coletivos e sociais. Renovam-se compromissos de governantes com políticas de igualdade de gênero. Desde a Constituição Cidadã de 1988 houve muito progresso. O combate à violência contra a mulher ganhou fôlego a partir da Lei Maria da Penha. Iniciativas de diversidade e inclusão, nos setores público e privado, têm,embora lentamente, proporcionado maior acesso de mulheres a cargos de liderança e reduzido a disparidade na remuneração com os homens.  Todavia, ainda há muitos desafios a enfrentar. A secular cultura patriarcal e machista procura se reinventar, ora sob a máscara de um discurso ideológico conservador que tenta ridicularizar o feminismo, ora sob o manto de uma visão religiosa extremista que defende e justifica a subalternidade feminina na família e na sociedade como expressão de uma suposta vontade divina. É preciso debater e combater essa visão reacionária, tão mais perigosa porque dissimulada. Um dos principais cenários da luta pela igualdade de gênero é o orçamento público. Com efeito, nunca encontraremos alguém dizendo que é contrário, por exemplo, a medidas de prevenção à violência de gênero ou a instalação de Delegacias da Mulher. Isso na teoria e no discurso. Mas temos que verificar – e cobrar – a prática de gestores e legisladores.  Quais os recursos efetivamente destinados nas leis orçamentárias para a implementação das políticas de proteção às mulheres? Sem orçamento, as políticas públicas não saem do papel e das – vá lá – “boas intenções”. Tem mais. Conquistar recursos nas leis orçamentárias não encerra o assunto. A lei orçamentária contém uma “autorização de despesa”, que nem sempre é impositiva. Assim, muitas vezes um determinado projeto é incluído na programação orçamentária, mas, ao longo do exercício, os recursos são contingenciados, isto é, a sua execução fica bloqueada, sendo liberada apenas nos últimos dias de dezembro, quando já não há tempo para a sua aplicação e dessa forma os gestores conseguem “superávits”. Outra situação frequente é quando os recursos são remanejados para outras áreas, por meio de decretos de abertura de créditos suplementares, cuja autorização prévia é sempre generosamente concedida pelo Legislativo Portanto, depois da aprovação das leis, é preciso também acompanhar de perto o processo de execução orçamentária. Em 2024, o Ministério do Planejamento produziu o Relatório “A Mulher no Orçamento”, com informações de grande relevância sobre a execução de programas federais como saúde integral da mulher, autonomia econômica e igualdade no mercado de trabalho e enfrentamento de todas as formas de violência. É necessário que estados e municípios também realizem estudos semelhantes para os seus respectivos orçamentos, assegurando maior transparência e monitoramento pela sociedade quanto ao cumprimento dos compromissos assumidos. Luiz Henrique Lima é professor e vice-presidente de controle externo da AUDICON – Associação Nacional de Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas.

Securitização de recebíveis municipais – cuidados para além daqueles da Lei Complementar 208/2024, por Alexandre Manir Figueiredo Sarquis

O Direito Financeiro é um grande desconhecido no ensino jurídico brasileiro. Sua inclusão no programa do exame nacional (a partir da 38º edição) pouco chamou a atenção da academia, que ainda relega o assunto às disciplinas optativas, se é que as oferecem. Ainda assim, há cátedras estabelecidas de Direito Financeiro, por exemplo, na Universidade de São Paulo e na Universidade Federal do Maranhão, entre outras. Trata-se da disciplina jurídica dos ingressos e das saídas de recursos públicos, do direito do orçamento público, da regulação jurídica do endividamento, do primo irmão do direito tributário – pelo lado das receitas – e do primo irmão do direito das licitações, contratos e convênios – pelo lado das despesas. É também um ramo repleto de peculiaridades que o afeiçoam ao Direito Constitucional, tanto que amiúde é debatido no STF. Ao contrário de outros ramos do direito, em que os objetos de interesse assumem natureza jurídica de mero ato administrativo, tais como o lançamento tributário ou o contrato administrativo, no Direito Financeiro, o principal objeto de interesse adota natureza jurídica de lei propriamente dita: o orçamento público é uma lei ordinária anual. Se as normas que regulassem a produção do orçamento estivessem a ele hierarquicamente equiparadas, isto é, se fossem outras leis ordinárias, restaria a impressão de que as regras seriam compostas conforme se anda, a cada ciclo que se inicia. Assim que um naco do Direito Financeiro consta diretamente na Constituição Federal, enquanto outro naco consta em legislação complementar, a exemplo da LRF e da Lei 4.320/1964 (recebida como lei complementar pela CF/88). A presunção é que leis complementares – diferentemente de leis ordinárias – propiciam maior rigidez, mas esse não tem sido necessariamente o caso no Brasil: desde a Constituição de 1988 promulgamos 156 leis complementares (da 56 de 1988 até a 214 de 2025), grande parte delas regulando algum aspecto do Direito Financeiro, enquanto passaram-se apenas 37 leis orçamentárias. Refletindo sobre esse panorama, conclui-se ser essencial que pressões sazonais e maiorias circunstanciais sejam obtemperadas, pelo texto direto da norma complementar, pela Constituição, pela prática, pela doutrina e pelos julgamentos dos Tribunais de Contas e do Judiciário. Trata-se do grande desafio de conciliar a vontade republicana, vocalizada pelo Poder Legislativo. LEI COMPLEMENTAR 208/2024 Nesse cenário é que veio a luz a Lei Complementar 208/2024, introduzindo o art. 39-A na Lei 4320/1964 (marco dos orçamentos públicos). Nele, fica autorizada a cessão onerosa de direitos tributários e não tributários a pessoas jurídicas ou fundos de investimentos. O projeto iniciou-se pela mão do incansável e estimado Senador José Serra (PLS 204/2016 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125723), e desde logo exibiu uma indisfarçada inspiração na norma paulista (Lei 13723/2009 https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2009/lei-13723-29.09.2009.html) que tem disposição semelhante para viabilizar as cessões à Companhia Paulista de Securitização – CPSEC. É bem verdade que há outras experiências, por exemplo, dos governos dos Estados do Piauí, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, bem como do município de Belo Horizonte (veja o artigo de Edson Ronaldo Nascimento para uma revisão de tais experiências https://www.conjur.com.br/2024-ago-02/a-securitizacao-de-recebiveis-e-a-lc-208-2024/). SECURITIZAÇÃO A lei ficou conhecida pela expressão “securitização”, que é um anglicismo, uma palavra transplantada do inglês, jurisdição em que as securities são o que conhecemos no Brasil como títulos e valores mobiliários. Securitização é, portanto, a transformação de um ou de alguns contratos em outros (geralmente muitos outros), sendo estes últimos considerados valores mobiliários. Estes valores mobiliários gozam de um mercado secundário bem regulado (CVM), o que potencializa sua segurança e volume de operações. A técnica existe desde há muito, mas ganhou certo impulso no mercado de endividamento público com o chamado “Brady Plan”. Por meio dele, contratos gigantescos e não performados de países em desenvolvimento foram trocados por títulos – os bradies – com prazos e valores mais atraentes para os consumidores de instrumentos financeiros habituais, em uma operação garantida pelo World Bank do FMI. Muito rapidamente floresceu o mercado secundário dos bradies o que, por sua vez, atraiu mais credores e mais países devedores – inclusive o Brasil, que inicialmente havia se mostrado reticente. Com isso, os credores originais limitaram sua exposição e devedores reduziram o custo de captação. Foi o típico ganha-ganha que ocorre quando são quebradas barreiras burocráticas, por detrás das quais estavam represados legítimos desejos dos mercados e da administração pública. A técnica contribuiu decisivamente para a solução da crise da dívida externa de muitos países nos anos 80, e da “década perdida” no Brasil. Mas aqui se iniciam os conflitos da securitização com o Direito Financeiro corrente. Isadora Parmigiani de Biasio, estudando as novidades legislativas, já havia alertado para a necessidade de observar as balizas constitucionais (https://www.conjur.com.br/2024-jul-24/securitizacao-das-dividas-ativas-no-mercado-breve-analise-da-lc-no-208-2024/). É necessário conceber como nosso Direito Financeiro acomoda a nova securitização. Por exemplo, o art. 11 da Lei Complementar 148/2014 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp148.htm#art11) é bastante claro ao estabelecer que “é vedada aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a emissão de títulos da dívida pública mobiliária”. A norma existe, pois, no passado, a emissão de valores mobiliários pelos municípios foi acompanhada por altos custos de transação e até mesmo da prática de ilícitos em certos casos, tais como no chamado “escândalo dos precatórios” (https://www.conjur.com.br/2000-dez-06/conheca_decisao_condenatoria_precatorios_sp/). EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL Então, o extraordinário conjunto de vedações ao endividamento dos municípios seria ou não apenas pânico dos burocratas sem real razão de ser? De um lado, é claro que a simples possibilidade de emissão de títulos municipais não conduz inexoravelmente à certeza de que haverá malfeito. Tome, por exemplo, os Estados Unidos, em que o mercado de títulos estaduais e municipais é tão consolidado que há diversos índices de acompanhamento. A conhecida agência Standard and Poor’s dispõe até mesmo de um painel para eles (https://www.spglobal.com/spdji/en/index-family/fixed-income/us-municipal/ ). Estamos falando, entretanto, de um Direito Financeiro muito diferente do nosso. Por lá, os governos subnacionais quebram, e estão sujeitos a recuperação judicial similar àquela das empresas privadas (chapter 9 do U.S. Bankrupcy Code de 1978), bem como podem se comprometer contratualmente à manutenção de certas taxas de cobertura do serviço da dívida pela receita, ou outras cláusulas específicas de default que seriam impensáveis no direito brasileiro…. Read more »