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“Pintou um clima” na Constituição Cidadã

Setembro nos trouxe, além da primavera, uma novidade constitucional de grande relevância. “Pintou um clima” na nossa Constituição Cidadã. Como assim? Pela primeira vez, a palavra “clima” foi inserida no texto constitucional, por meio da Emenda Constitucional – EC 136, de 9 de setembro de 2025. Com efeito, à época da eleição da Constituinte, em 1986, e de sua elaboração e promulgação em 1988, o debate acerca das mudanças climáticas globais ainda era restrito a um pequeno grupo de cientistas. Foi somente em 1988 que se criou o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC, com a finalidade de promover avaliações científicas multidisciplinares sobre o tema, seus impactos e possíveis estratégias de mitigação e adaptação. E foi no Rio de Janeiro, em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a RIO-92, que foi assinada a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, com o objetivo central de estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera em um nível que evitasse interferências perigosas no sistema climático. Assim, no seu nascedouro, embora contando com um pioneiro e excelente capítulo dedicado ao meio ambiente, nossa Constituição não tratou direta e especificamente da questão do clima, proclamando, no entanto, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (Art. 225). A partir de tais fundamentos, importantes normas foram elaboradas, como as políticas nacionais de recursos hídricos (Lei 9.433/1997), de resíduos sólidos (Lei 12.305/2010) e de mudanças climáticas (Lei 12.187/2009), bem como o sistema nacional de unidades de conservação (Lei 9.985/2000). Com o Decreto 11.349/2023, a Mudança do Clima alcançou status ministerial, mas faltava ainda ser recepcionada na Constituição Cidadã. A lacuna começou a ser suprida pela EC 136/2025, cujo objeto principal é a alteração do Regime Especial de Pagamento de Precatórios pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, bem como o estabelecimento de novo prazo de parcelamento especial de débitos desses entes com os seus regimes próprios de previdência social e dos Municípios com o Regime Geral de Previdência Social. A novidade é que foi inserido no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a possibilidade de utilizar superávits financeiros de fundos públicos municipais para o financiamento de políticas públicas locais de saúde, educação e adaptação às mudanças climáticas (§2º do art. 76-B do ADCT). Ademais o art. 5º da EC 136/2025 prevê que durante os exercícios de 2025 a 2030, até 25% (vinte e cinco por cento) do superávit financeiro das fontes de recursos vinculados dos fundos públicos do Poder Executivo da União, apurado ao final de cada exercício, poderão ser destinados a projetos estratégicos relacionados à destinação do respectivo fundo ou ao financiamento reembolsável de projetos relacionados ao enfrentamento e à mitigação da mudança do clima, à adaptação a essa mudança e aos seus efeitos, bem como à transformação ecológica. Na gíria carioca, de onde recolhi o título deste artigo, “pintou um clima” descreve o momento em que um flerte despretensioso repentinamente oferece a oportunidade de um envolvimento mais profundo. Oxalá isso venha a ocorrer em matéria constitucional. Que a presença inaugural e ainda tímida do vocábulo “clima” na nossa Carta Maior seja o prenúncio de um engajamento e comprometimento cada vez maior de toda a nação com a proteção ambiental e a sustentabilidade. Luiz Henrique Lima é Vice-presidente de Controle Externo da AUDICON e Doutor em Planejamento Ambiental (COPPE-UFRJ).

Contabilidade: muito além de registros e relatórios!

Muita gente ainda confunde Contabilidade com escrituração contábil. Nada mais equivocado. A Contabilidade é uma ciência que, ao longo dos séculos, evoluiu junto com o desenvolvimento econômico e tecnológico, especialmente do mercado de capitais e dos modelos de negócios. Ela não se resume a fazer lançamentos e elaborar relatórios contábeis. A Contabilidade moderna abrange, no mínimo, quatro funções fundamentais: a escrituração, sim, mas também as demonstrações contábeis, a auditoria e a análise de balanços (Cunha, 2018). São funções que se complementam. Enquanto a escrituração registra os fatos, as demonstrações organizam e sintetizam os registros para permitir a avaliação da situação econômica e financeira da organização, a auditoria examina sua confiabilidade e conformidade e a análise fornece informações econômicas-financeiras para apoiar a tomada de decisões estratégicas. Além dessas funções básicas, a mensuração e avaliação, planejamento, orçamento, gestão e planejamento tributário, gestão de custos, controle interno contábil, prevenção e detecção de fraudes e irregularidades etc., são funções da Contabilidade, estudadas e/ou exercidas geralmente como funções da Controladoria (Borinellli, 2006; Lunkes et al., 2011; 2013), uma especialização da Contabilidade ou Contabilidade de Gestão. É por isso que soa tão reducionista a forma como a Emenda Constitucional nº 109, de 2023, à Constituição do Estado de Mato Grosso, tratou a contabilidade nos artigos 56-A e 206-A. É verdade que o texto avança ao reconhecer que “as atividades de contabilidade são essenciais à gestão orçamentária, financeira e patrimonial da Administração Pública” (Mato Grosso, 2023, grifei). Mas, o texto o seguinte, que deveria ser um avanço na estrutura conceitual resumiu-se a procedimentos. Isso porque, o texto da proposta original apresentada em 2022 a um grupo de contadores públicos – representantes do CRC/MT – o campo de atuação da Contabilidade era muito mais amplo. Ela destacava o papel da Contabilidade não apenas para registrar, mas também para promover a transparência, a prestação de contas e a fiscalização da gestão fiscal e das contas públicas. Ou seja, reforçava o papel estratégico do contador público na governança pública. Já o texto aprovado em 2023, além de ser prolixo e conter falhas de técnica legislativa, a parte central dos artigos 56-A e 206-A se prendeu a uma visão procedimental. Em vez de ampliar o campo de atuação da Ciência Contábil no setor público, restringiu-a à centralizaçã de registros e à produção de relatórios fiscais. Resultado: um texto sem avanços significativos, que resume as relevantes funções da Contabilidade à escrituração e à produção de relatórios. Essa visão míope é perigosa. A Contabilidade, como ciência e política (legislação), vai muito além disso. Ela garante que a sociedade tenha clareza sobre onde e como o dinheiro público é aplicado, possibilita o controle do patrimônio e dá suporte às decisões que impactam a vida da população. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal e o Decreto nº 10.540/2020 sinaliza que a contabilidade é instrumento de transparência da gestão fiscal, prestação de contas e responsabilização e apoio à tomada de decisão. Contudo, a primeira parte daqueles dispositivos constitucionais tem o condão de vincular os Poderes Legislativos e Executivos quanto a necessária atuação do contador público nas atividades e sistemas de planejamento/orçamento e de administração financeira do Estado e dos municípios mato-grossenses. Sendo assim, o projeto de lei estadual que vier a organizar esses sistemas dever conter dispositivos que assegure a atuação dos profissionais da contabilidade nesses sistemas. Se o texto constitucional não reflete integralmente essa visão, cabe aos profissionais, entidades da classe contábil e os Conselhos de Fiscalização da Profissão Contábil, empreender esforços junto aos Parlamentos federal e estadual para corrigir esse rumo. É preciso lutar por uma legislação mais clara e efetiva, que valorize a Contabilidade no setor público e reconheça o papel estratégico do contador na governança do Estado e dos municípios mato-grossenses. Por fim, Contabilidade não é, e nunca será, apenas escrituração. Ela é a linguagem das finanças públicas e a espinha dorsal do controle dos atos de gestão subjacentes, da transparência, da prestação de contas, da gestão fiscal responsável das instituições públicas. Sem dados e informações contábeis, não há governança, gestão e controles públicos eficazes. Isaías Lopes da CunhaDoutorando e mestre em Ciências Contábeis, bacharel em Ciências Contábeis e em Direito, e Auditor Substituto de Conselheiro do TCE-MT Referências:BORINELLI, M. L. Estrutura básica conceitual de controladoria: sistematização à luzda teoria e da prática. 2006. 341 f. Tese (Doutorado em Ciências Contábeis)-Faculdade deEconomia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12136/tde-19032007-151637/publico/Tesemarcioborinelli.pdf> Acesso em: 5 out. 2025. CUNHA, I. L. A Auditoria Contábil Financeira e o Julgamento das Contas Públicas In:Contas Governamentais e Responsabilidade Fiscal: Desafios para o Controle Externo – Estudos de ministros e conselheiros substitutos dos Tribunais de Contas, ed.1. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 249 – 280. LUNKES, R. J.; SCHNORRENBERGER, D. ; ROSA, F. S. Funções da Controladoria: uma análise no cenário brasileiro. Revista Brasileira de Gestão e Negócios, São Paulo, v. 15, n. 47, p. 283-298, abr./jun. 2013. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbgn/a/qpNkP9SLzSCWfrZLKMxt45s/abstract/?lang=pt> Acesso em: 5 out. 2025. LUNKES, R. J.; MACHADA, A. O.; ROSA, F. S.; TELLES, J. Funções da Controladoria: um estudo nas 100 maiores empresas do estado de Santa Catarina. Análise Psicológica, Lisboa, v. 29, n. 2, p. 345–361, 2011. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/262669051_Funcoes_da_controladoria_Um_estudo _nas_100_maiores_empresas_do_Estado_de_Santa_Catarina> Acesso em: 5 out. 2025. MATO GROSSO. Assembleia Legislativa do Estado de Matro Grosso. Emenda Constitucional nº 109, de 26 de abril de 2023. Cuiabá – MT. Disponível em:<https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=445045> Acesso em: 3 out. 2025.

Ecos de Minas, por Luiz Henrique Lima

“Liberdade é o outro nome de Minas Gerais.” A histórica frase de Tancredo Neves ecoou novamente esta semana, no auditório repleto do Tribunal de Contas mineiro. O brado, pronunciado em seu discurso de posse como primeiro governador eleito diretamente pelos mineiros após duas décadas de ditadura, permanece atual e imorredouro. A citação foi lembrada pelo Conselheiro Durval Ângelo, presidente daquela Corte e que presidiu no dia 9 de setembro a solenidade de entrega do Colar de Mérito da Corte de Contas Ministro José Maria Alckmin. Em sua fala, ao rememorar os 90 anos de história do TCE-MG, Durval Ângelo destacou o indissociável liame entre democracia e controle externo, assinalando que a ditadura do Estado Novo chegou a fechar o Tribunal de Contas e a colocar seus membros em disponibilidade, inclusive seu primeiro presidente, José Maria Alckmin, que dá o nome à comenda. Perseguição semelhante alcançou o ministro Thompson Flores do TCU, cujo voto independente apontando graves irregularidades na gestão federal desagradara aos mandatários do regime. Somente com a redemocratização de 1946 é que o TCE-MG pode retomar suas atividades. Hoje, a Corte de Contas mineira desempenha um papel de liderança e vanguarda na sua atuação por políticas públicas de qualidade, com auditorias operacionais, monitoramentos, trilhas tecnológicas de fiscalização e mesas de conciliação. Além disso, está sendo um dos primeiros tribunais do país a contemplar no seu concurso público cotas para pessoas com deficiência, negros, pardos e quilombolas, e também uma cota para pessoas transgênero. Confesso que fiquei honrado e surpreso ao saber que também seria agraciado com o Colar de Mérito, ao lado de algumas das mais eminentes personalidades do mundo jurídico e artístico nacionais. Foi comovido que o recebi, das mãos de um jovem e valoroso colega, o Conselheiro Substituto Telmo Passareli, e na companhia da querida amiga Conselheira Substituta Milene Cunha, presidente da Associação Nacional dos Ministros e Conselheiros Substitutos. A cerimônia foi singela, com poucos discursos, mas de grande densidade. O grande mural do artista Guignard que decora o auditório é uma representação simbólica da cultura, da história e da identidade de Minas Gerais, com suas paisagens típicas— montanhas onduladas, igrejas barrocas, vilarejos e o céu amplo e lírico, além de homens e mulheres simples, trabalhadores e crianças brincando. A obra, uma joia do patrimônio cultural brasileiro, tem no seu centro a imagem de um dos inconfidentes, os primeiros brasileiros que se organizaram contra o jugo colonial, lutando por um país independente e uma república constitucional. Em tempos em que Silvérios reencarnados conspiram com estrangeiros contra a nossa soberania e a nossa democracia, a memória dos inconfidentes despregou-se do mural e contagiou todos os presentes. Após a solenidade e a carinhosa, impecável hospitalidade, sinto-me renovado e impregnado pelo espírito libertário e democrático dos mineiros. Trago em meu coração os ecos de Minas Gerais. Como canta o querido Milton Nascimento em “Paixão e Fé”: “Minas é dentro da gente / E não se tira jamais.” Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto e Vice-presidente de Controle Externo da Audicon.

Viver, por Luiz Henrique Lima

É provável que a realidade do suicídio já tenha tocado a vida de alguém que você conheceu: um colega de trabalho, um vizinho, um parente ou uma personalidade pública. Cada uma dessas tragédias teve seu próprio enredo. Em comum, cada vítima deixou em média seis pessoas profundamente abaladas — pais, filhos, cônjuges, amigos — marcadas por sentimentos de culpa ou impotência por não terem conseguido evitar o desfecho. Mas, se o que passou nos entristece, o presente nos desafia e o futuro nos oferece uma chance. Os dados dos últimos anos registram uma tendência de aumento de óbitos por suicídio no Brasil, ou seja, é crucial reconhecer os sinais de alerta e agir para prevenir. Precisamos falar sobre isso. A solidão dos idosos é uma dor silenciosa. Muitos enviuvaram e não se adaptaram à ausência do companheiro de décadas. Outros vivem esquecidos pelos filhos e netos, que raramente os visitam. Há ainda os que foram perdendo os amigos próximos, um a um, e agora convivem com a saudade e o eco de lembranças que já não têm com quem dialogar. Somam-se a isso as limitações e doenças que a velhice traz, às vezes agravadas por dificuldades financeiras. O tempo, que deveria trazer serenidade e realização, pode resultar em abandono. E o abandono, quando se prolonga, pode se tornar insuportável. Os adolescentes também enfrentam uma solidão cruel, embora cercados por telas e notificações. Faltam-lhes diálogo genuíno, contato humano, escuta sem julgamento. As redes sociais, que poderiam aproximar, muitas vezes isolam e radicalizam. Sem filtros emocionais, esses jovens são expostos a padrões inalcançáveis, discursos de ódio e estímulos destrutivos. A dor que sentem é real, mesmo que ainda não saibam nomeá-la. A depressão, por sua vez, é uma doença que não se vê, mas que consome. Ela não é fraqueza, não é falta de fé, não é ingratidão. É uma condição médica, que precisa de tratamento, acolhimento e tempo. Não distingue idade, gênero, classe social ou sucesso profissional.  Quem sofre de depressão pode estar sorrindo por fora e desmoronando por dentro. E o mais grave: pode acreditar sinceramente que o mundo estaria melhor sem ela. E isso não é verdade. Cada um de nós é único e traz em si um potencial para fazer o bem e criar coisas belas. No entanto, muitas pessoas ainda não descobriram suas próprias capacidades ou, pior, dão crédito às vozes que as desvalorizam e desrespeitam. É preciso desfazer mitos. Suicídio não é covardia. Não é egoísmo. Não é escolha racional. Na maioria dos casos, é consequência de sofrimentos psíquicos ou dependência química, ambos com possibilidade de tratamento. E, sim, o suicídio pode ser evitado. Falar sobre o tema não incentiva o ato — ao contrário, ajuda a salvar vidas. O silêncio é que isola. A escuta é que acolhe. A informação é que previne. O Setembro Amarelo é mais do que uma campanha dirigida àqueles que estão em risco: é um chamado a todos nós, para exercer a empatia e a compaixão. Precisamos olhar com mais atenção ao nosso redor; oferecer palavras com mais cuidado, e estar mais presentes com frequência. Viver é a melhor opção — e às vezes tudo o que alguém precisa para continuar vivendo é saber que não está sozinho, que é estimado e valorizado por alguém que não o julga e que, mesmo com as fragilidades que cada ser humano carrega, pode ser útil a um propósito maior. Como bem nos ensinou Gonzaguinha: “Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será / Mas isso não impede que eu repita / É bonita, é bonita e é bonita”. Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto e vice-presidente de Controle Externo da Audicon.

Ser economista, por Luiz Henrique Lima

Celebrado em agosto, o Dia do Economista é, para mim, um momento de reflexão e de renovado entusiasmo pela jornada que escolhi. Foi meu querido pai, engenheiro quem me aconselhou a optar pelo curso de Ciências Econômicas. Talvez ele intuísse que, para além de uma formação profissional, despertaria uma paixão que moldaria minha forma de ver e entender o mundo. Obrigado, pai. Você acertou. A princípio, as fórmulas e os gráficos pareciam distantes da complexidade da vida. Mas, à medida que aprofundava meus estudos, guiado pelos excelentes mestres da Faculdade de Economia da UFRJ, concluí que a economia não é uma ciência abstrata, isolada do tempo e do espaço. Ao contrário, a evolução da humanidade se confunde com a história econômica e pode ser explicada pelas múltiplas correntes do pensamento econômico. Descobri que a compreensão do presente e a prospecção do futuro exigem um mergulho no passado, na forma como as sociedades se organizaram, produziram e distribuíram suas riquezas. Essa percepção libertou-me de uma visão limitada às finanças e aos métodos quantitativos comuns às ciências exatas e descortinou novos horizontes de temas conectados às ciências sociais e humanas. Assim, a missão do economista transcende muito a análise de mercados e a busca da otimização de recursos. Sua atuação é crucial na formulação, no planejamento, na execução e no monitoramento das políticas públicas. É o economista que, com sua capacidade de análise e sua familiaridade com as ferramentas quantitativas, pode oferecer o suporte técnico necessário para que as decisões governamentais sejam mais eficientes e voltadas para o bem-estar coletivo. O bom economista domina técnicas estatísticas e cálculo diferencial; porém, para ser completo, deve também ser um dedicado cientista social e humanista. E no século XXI, a ciência econômica deve ser cada vez mais próxima das ciências ambientais. É preciso compreender que o sistema econômico global é apenas um subsistema do ecossistema planetário e, portanto, deve subordinar-se a determinados limites e observar a capacidade de suporte de ambientes e elementos estratégicos, sob pena de produzir mudanças irreversíveis e trágicas consequências. O economista lúcido não se deixa seduzir pelo chamado “fetiche do PIB” como medida absoluta, infalível e universal do desenvolvimento e do bem-estar. Ao contrário, deve esclarecer ao público que, apesar de útil, trata-se de uma ferramenta limitada por vieses conceituais, especialmente na seara ambiental, que devem ser debatidos e corrigidos para que o crescimento na produção econômica não se traduza em destruição socioambiental. A degradação do patrimônio natural, a desorganização social e a perda de biodiversidade e de vidas humanas são os custos ocultos que o modelo econômico tradicional não captura. E o economista responsável tem o dever de revelar esses riscos, para que sejam considerados nas análises custo-benefício e se aplique o princípio da precaução. Quem quiser se aprofundar, não faltam brilhantes estudos de renomados autores da Economia Ecológica e da Contabilidade Ambiental, mas não por acaso tais obras ainda são frequentemente ignoradas nos cursos de formação de novos economistas. A sensibilização dos economistas e da sociedade para os temas ambientais e de sustentabilidade é um imperativo moral e profissional urgente. O desafio é construir um futuro democrático em que o progresso econômico reconheça e respeite as complexas interações entre economia e meio ambiente e consiga ser sinônimo de prosperidade, justiça social, equidade e respeito pelos limites do nosso planeta. É uma missão digna, e, a cada Dia do Economista, sinto-me honrado em poder dela fazer parte. Parabéns aos colegas que partilham desta jornada e gratidão aos mestres que nos precederam e ensinaram!

Escolas medievais no Brasil, até quando? – por Luiz Henrique Lima

O estudo da História nos permite imaginar a realidade cotidiana de uma escola medieval. Na ausência de energia elétrica, o aprendizado era ditado pela luz natural do sol, pelas fogueiras crepitantes em lareiras ou pela chama de velas e lamparinas. A ausência de água potável corrente significava que o acesso à água dependia de poços ou fontes próximas, muitas vezes carregada em baldes, e sua potabilidade era uma preocupação constante, com elevada incidência de doenças. Por sua vez, a inexistência de banheiros resultava na utilização de latrinas simples, muitas vezes buracos no chão, ou na dependência de áreas externas para as necessidades fisiológicas, o que contribuía para um ambiente com pouquíssima higiene e odores fortes. Por que recordar esse cenário? Porque essa é a triste e vergonhosa realidade que ainda encontramos em nosso país no segundo quarto do século XXI. Quem a denuncia são os dados oficiais, provenientes do Censo Escolar de 2024, a partir de questionários autodeclaratórios das próprias unidades escolares. O Censo Escolar reúne informações de 181.065 escolas brasileiras. Dessas, 6.307 não dispõem de água potável, afetando cerca de 650 mil alunos. Ademais, 5.765 unidades não contam com esgotamento sanitário. Pior: 4.925 escolas não têm sequer um banheiro para atender estudantes, professores e funcionários. Finalmente, 2.532 estão desprovidas de qualquer tipo de abastecimento d’água e 2.209 de qualquer forma de energia elétrica. Onde estão essas escolas? Em todas as regiões e em todos os estados brasileiros, principalmente nas áreas rurais, mas até mesmo nas mais ricas capitais do Sul e do Sudeste. Os dados estão em https://public.tableau.com/app/profile/cnmp/viz/SededeAprender/SededeAprender, compilados pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em parceria com diversas organizações. Estimados leitores, como podemos ser indiferentes e não nos indignarmos com isso? Crianças tentando estudar em escolas sem saneamento? Professores lecionando sem acesso a instalações sanitárias mínimas? Servidores improvisando com baldes d’água para manter um mínimo de higiene? Velas e lamparinas para iluminar as salas de aula? Muitas dessas escolas possuem na sua entrada placas comemorativas de sua inauguração expondo o nome de autoridades responsáveis pela sua construção ou reforma. Será que alguém tem orgulho de ver o seu nome associado a uma escola sem água, esgoto ou banheiro? Alguém poderia argumentar: mas o que você descreve ocorre em uma proporção mínima, considerando o total de 181.065 escolas. Exatamente por isso é que essa é uma situação inaceitável. Trata-se de um problema de dimensão limitada e cuja solução não envolve tecnologia sofisticada ou grandes recursos financeiros. Planejar uma rede de água e esgoto não exige conhecimentos astrofísicos ou de computação quântica. Construir um banheiro bem equipado para uma escola custa uma ninharia diante do que prefeituras e estados despendem na promoção de eventos que duram um dia apenas. E, no entanto, ano após ano, a cada edição do Censo Escolar, tenho publicado artigos semelhantes a este aqui nos mais variados veículos de comunicação, sempre com o mais retumbante insucesso na tentativa de sensibilizar governantes e mobilizar cidadãos para decidir que nenhuma criança brasileira deve estudar numa escola medieval. É impossível formar cidadãos conscientes quando o ambiente escolar comunica descaso. Uma criança que não encontra água limpa para beber ou um banheiro para usar está recebendo, antes de qualquer lição curricular, uma aula de abandono. Essas escolas, caros leitores, não são escolas. São galpões de desrespeito. São monumentos à falência das prioridades públicas. São cárceres de sonhos, onde crianças são ensinadas a se conformar com a indignidade e professores aprendem a pedagogia da sobrevivência. A Constituição Cidadã garante qualidade mínima no ensino. A Estratégia 6.3 do Plano Nacional de Educação trata do programa nacional de ampliação e reestruturação das escolas públicas, por meio da instalação de quadras poliesportivas, laboratórios, inclusive de informática, espaços para atividades culturais, bibliotecas, auditórios, cozinhas, refeitórios, banheiros e outros equipamentos. A Lei 14.172/2021 prevê acesso digital. Sim, 90% das escolas brasileiras já têm acesso a internet, sendo 77% com banda larga, o que torna ainda mais trágico e cruel o tratamento desigual para aquelas em que o básico – água potável, banheiro, luz, dignidade – ainda é negado. Até quando? Este artigo não é uma crítica a gestores A ou B ou X ou Y ou Z. É uma conclamação a que sociedade civil, conselhos escolares, órgãos de controle e, principalmente, nós, cidadãos, expressemos nosso inconformismo e exijamos a imediata e completa resolução do problema. Será um dia feliz aquele em que o Censo Escolar nos revelar que nenhuma escola brasileira submete sua comunidade a condições medievais. Luiz Henrique Lima é vice-presidente de Controle Externo da AUDICON.