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Mitos e dizeres da Constituição sobre o Tribunal de Contas – por Alexandre Manir Figueiredo Sarquis

Segundo a doutrina majoritária, o Tribunal de Contas julga, mas tal julgamento não é senão um dizer da Constituição, uma expressão acidental do art. 71, II que rapidamente se embota em nua nominalidade tão logo despida do sentido que, alhures, lhe é reconhecido. O Tribunal de Contas é dotado de jurisdição (art. 73), mas a locução, ali, manifesta algo diverso. Seus membros têm por função a judicatura (art. 73, §4º), só que não. Apreciam a legalidade de atos (art. 71, III, VIII e IX), mas isso, novamente, não o é. Suas decisões constituem um título executivo (art. 71, §3º) de prosaica palidez, incapaz, por si só, de rivalizar o processo de cognição. Seu regimento guarda atenção às normas de processo e garantias processuais das partes (art. 73 c/c art. 96, I, “a”), uma extravagância desnecessária e ociosa. Como essas, outras heterotopias. Ah, como é sutil a interpretação! Inúmeros são os dizeres a superar na investigação pelo verdadeiro sentido da Constituição. Para mim, entretanto, nada sacode a impressão de que há excursão que se desprende do esquadro pretendido pelo substrato semântico. De qualquer forma, assim vai se consolidando a jurisprudência, como Conrado Tristão, em invencível maestria, esclarece (“TCU e o mito da ‘jurisdição de contas’”). Ocorrem-me duas perguntas. A primeira é: por quê? Melhor, talvez, por que tão rapidamente? Há pouco menos de três décadas tínhamos uma instituição em cuja Lei Orgânica, ao capítulo intitulado “do julgamento”, colhia-se até mesmo a possibilidade de ordenar a prisão daqueles que não prestassem contas (DL 199/67 art. 40, II). Desse inconveniente e exagerado vigor de outrora resta, em pronunciada antítese, apenas a remota possibilidade de incurso em ato de improbidade administrativa (Lei 8429/92 art. 11, VI) e mesmo esse comando para prestar contas encontra-se em vias de ser revogado, acaso aprovado o substitutivo do PL 10887/2018, movimento a que já se antecipa a jurisprudência (TSE Resp 0600135-02.2020.6.26.0172). Pondero o fato de que, após a prova técnica, após parecer do Ministério Público de Contas, após franqueados os meios de impugnação das decisões, após a sustentação oral, após a sessão pública colegiada, enfim, após o longo processo de Contas, emerge um título que é confiado ao próprio vencido para que, de esforços próprios, o execute. Em sendo o mérito de fundo restituído ao juízo do primeiro grau, é natural que novos argumentos, provas e circunstâncias sejam explorados, desta vez em dialética processual entre partes desejosas de desfecho diverso, alienando e minimizando os motivos que originalmente agitaram o Tribunal de Contas. Idealizar um rearranjo do condomínio estatal em que as autoridades fiscalizadas se declarem satisfeitas com a intromissão do Tribunal de Contas não parece constituir expectativa razoável. De outro giro, confiar em uma percepção popular da conveniência e propriedade de tal limitação do Poder Executivo tampouco parece razoável. A função do fiscal das contas é induzir cuidadosa e parcimoniosa execução de despesa e do endividamento a fim de que se atenham aos objetos e limites escolhidos pela sociedade: uma manifestação da autocontenção burocrático contábil que, convenhamos, para além da difícil compreensão, não seduz tanto quanto a exuberância do gasto propriamente dito. Talvez escape o fato de que a prerrogativa de tomar contas somente se alcançou após extraordinário avanço civilizatório, que remonta às vitórias da revolução francesa (art. 15 da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão). É a forma de que dispomos para aferir se o administrador atua de forma prudente e de acordo com o que a sociedade dele espera, em consonância com o complexo de postulados financeiros e administrativos. O Tribunal de Contas é um instrumento republicano na busca pela concretização dos direitos fundamentais, propiciando justiça e igualdade. Mas se é tamanha a resistência à tese da ‘jurisdição de contas’, por que não alimentar a digressão contrária? Quero dizer, poderíamos cogitar se, em verdade, não seria mais favorável ao interesse público justamente que o Tribunal de Contas abandonasse o julgamento de atos em definitivo. Qual o panorama que se desenharia acaso acolhida definitivamente a tese? O que restaria do Tribunal de Contas? Essa é a segunda pergunta que me ocorre. Cresce em julgados o tom crítico ao enunciado 347 da súmula do STF (“O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”). A falência da tese de jurisdição de contas, por óbvio, imporia a definitiva erosão da legitimidade do enunciado: os atos e leis dos entes fiscalizados não poderiam ser questionadas pelo Tribunal de Contas, a quem não se reconhece nem a arguição de inconstitucionalidade, posto que não figura entre os legitimados para tal. Mas veja que Leis Orçamentárias são, antes de mais nada, Leis. As destinações mínimas à educação, saúde e previdência, as vedações orçamentárias, as participações de Municípios e Estados nas receitas dos estados e da União, as limitações de endividamento e de gasto com pessoal, de outro lado, são disposições constitucionais. Nesse sentido, a retirada da Carta Política enquanto paradigma apto ao controle da conduta parece abreviar muito do que hoje constitui função do Tribunal. Há ainda diversas outras regras, acerca de funcionalismo, previdência, cargos, empregos e funções e teto remuneratório, todas figurando na Carta Política e, portanto, passariam a estar indisponíveis ao Controle. Ademais, o que estaria a impedir que, ante o panorama de relativização do dever de prestar contas anteriormente mencionado, os ordenadores de despesa atalhassem sua defesa no Tribunal, alegando, por exemplo: “as contas estão regulares, mas, sobre elas, reservo-me o direito de falar em juízo”? Talvez deveria o Tribunal se recolher em sua escola de contas. Aliás, nesse intuito foi lançado o art. 173 da nova Lei de Licitações (“Os tribunais de contas deverão, por meio de suas escolas de contas, promover eventos de capacitação para os servidores efetivos e empregados públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei, incluídos cursos presenciais e a distância, redes de aprendizagem, seminários e congressos sobre contratações públicas”). Nenhuma disposição ilustra com maior clareza o périplo por que passa a Corte de Contas, posto… Read more »

A nova lei de licitações e o controle externo (1ª. parte) – por Luiz Henrique Lima

Em artigo anterior, comentei a nova lei nacional de licitações e contratos, que aguarda sanção para entrada em vigor, enfatizando aspectos ligados ao fortalecimento do papel do controle interno da administração pública. Como ressaltado, o tema é de grande interesse para todos que se relacionam com a gestão pública em todas as esferas e poderes. Cumpre agora refletir brevemente acerca das inovações que concernem o exercício do controle externo pelos tribunais de contas. Essas são essencialmente de três naturezas: o que foi acrescentado, o que foi alterado e o que foi suprimido, em relação às normas anteriores. Iniciando pelo que existia e foi suprimido, o art. 113 da Lei 8.666/1993 previa que o controle das despesas decorrentes dos contratos e demais instrumentos por ela regidos seria feito pelo Tribunal de Contas competente, ficando os órgãos interessados da Administração responsáveis pela demonstração da legalidade e regularidade da despesa e execução, nos termos da Constituição e sem prejuízo do sistema de controle interno nela previsto. Isso representa a inversão do ônus da prova, ou seja, cabe ao gestor evidenciar que os recursos públicos a ele confiados foram corretamente empregados. Ademais, o parágrafo primeiro estabelecia que qualquer licitante, contratado ou pessoa física ou jurídica poderia representar ao Tribunal de Contas ou aos órgãos integrantes do sistema de controle interno contra irregularidades na aplicação da Lei. Finalmente, o parágrafo segundo do artigo previa que os Tribunais de Contas e os órgãos integrantes do sistema de controle interno poderiam solicitar para exame, até o dia útil imediatamente anterior à data de recebimento das propostas, cópia de edital de licitação já publicado, obrigando-se os órgãos ou entidades da Administração interessada à adoção de medidas corretivas pertinentes que, em função desse exame, lhes fossem determinadas.  Isso significa que a compulsoriedade da correção de procedimentos, quando determinada pelos órgãos de controle. Como enfatizei em algumas de minhas obras e cursos, foi com base nesse art. 113 e seus parágrafos que os TCs brasileiros promoveram a correção de inúmeras falhas em procedimentos licitatórios e na execução dos contratos dele decorrentes, evitando substanciais danos ao erário, da ordem de bilhões de reais anualmente, e assegurando a observância de princípios fundamentais da administração pública. A nova lei, curiosamente, tratou do controle no seu Título IV – “Das Irregularidades” e posicionou o capítulo III – “Controle das Contratações”, após os capítulos relativos a “infrações e sanções administrativas” e “impugnações, pedidos de esclarecimento e recursos”. Ora, controlar é muito mais do que apontar irregularidades e aplicar sanções, de modo que a organização topográfica da norma não foi feliz nesse aspecto. Da redação do antigo art. 113, sobrou apenas o parágrafo primeiro, agora renumerado como parágrafo quarto do art. 170. Quanto à importantíssima disciplina sobre a inversão do ônus da prova e a compulsoriedade da adoção de medidas corretivas, a nova lei silencia, o que poderá ensejar acirradas polêmicas e a judicialização de muitos processos de fiscalização. Em próximos artigos, darei prosseguimento à análise de outros relevantes dispositivos constantes do novo diploma legal. Como se sabe, o processo legislativo só finda após a sanção presidencial ou a apreciação pelo Congresso Nacional dos vetos, caso ocorram. Assim, ainda é possível que ocorram mudanças pontuais nos tópicos aqui analisados. Todavia, embora por certo o tema exija debates e estudos mais aprofundados, não é prematuro concluir que os dispositivos sobre o controle externo não foram de melhor inspiração ou mais apurada técnica no processo de elaboração da nova lei de licitações. Luiz Henrique Lima é Auditor Substituto de Conselheiro do TCE-MT.

A nova lei de licitações e o controle interno – por Luiz Henrique Lima

Após muitos anos de tramitação legislativa, esta semana o Senado aprovou a redação final do projeto de lei da nova lei de licitações e contratos administrativos, que foi enviada ao Poder Executivo para sanção. A matéria é de interesse direto de todos os que interagem com a administração pública em todas as esferas e poderes. São importantes as alterações em relação às normas anteriores, que serão revogadas: as leis 8.666/1993 (normas gerais de licitações); 10.520/2002 (pregão) e 12.462/2011 (regime diferenciado de contratações). Assim, o tema deverá ser objeto de inúmeros artigos, seminários, cursos e debates. Neste breve artigo, pretendo destacar um ponto que me parece de capital importância e que demandará medidas imediatas por parte dos gestores públicos. Trata-se do controle interno. A implementação da nova lei de licitações e contratos exigirá a reformulação e o fortalecimento dos órgãos e mecanismos de controle interno em todas as áreas da administração pública. Observem que na lei 8.666/1993, que nos regeu por quase três décadas, a expressão “controle interno” é mencionada por seis vezes, sempre de forma associada aos tribunais de contas. Já no texto da nova norma constam pelo menos vinte e cinco menções a “controle interno”, “controles internos”, “controle preventivo”, “controle prévio” e “órgãos de controle”. Isso indica como o legislador, acertadamente, compreendeu a relevância estratégica da atuação do controle interno para que sejam alcançados os objetivos do processo licitatório, como assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a administração pública e evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos. Uma inovação positiva da nova lei é a explicitação de que a autoridade máxima de cada órgão deverá observar o princípio da segregação de funções, vedada a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação. Ademais, a alta administração do órgão ou entidade é declarada responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações. Pela primeira vez, o gerenciamento de riscos foi tratado com destaque numa lei nacional, definindo-se que as contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, cabendo aos controles internos administrativos a primeira linha de defesa, ao órgão de controle interno de cada órgão ou entidade a segunda linha de defesa e ao órgão central de controle interno da administração a terceira linha de defesa, em conjunto com o respectivo tribunal de contas. Em síntese, muito ainda teremos que estudar e refletir sobre a nova lei de licitações, mas desde logo os gestores públicos devem se preparar para conferir ao controle interno o papel de destaque que sempre mereceu. Um controle interno tecnicamente aparelhado é indispensável e decisivo para a boa execução das políticas públicas.   Luiz Henrique Lima é Auditor Substituto de Conselheiro do TCE-MT.  

O Novo Fundeb e os municípios – por Luiz Henrique Lima

Uma das mais importantes deliberações do Congresso Nacional em 2020 foi a aprovação da Emenda Constitucional 108, que instituiu em caráter permanente o novo Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. O anterior, criado em 2003, tinha prazo de vigência, que expirou em 2020. A educação básica é, sem dúvida alguma, a mais importante política pública a ser perseguida por uma nação. É pilar e pré-condição para a cidadania política, o desenvolvimento econômico e a soberania nacional. Desta forma, é estratégico e essencial para a sociedade brasileira assegurar-lhe uma fonte permanente de financiamento, bem como implantar mecanismos de redução das disparidades regionais, certificação de padrões de qualidade, pagamento de remuneração condigna aos profissionais de educação e participação e controle social da aplicação dos recursos. Importante assinalar que há poucos dias, sob o claudicante pretexto de compensação fiscal para a prorrogação do auxílio emergencial da pandemia, pretendeu-se, na malsinada “PEC Emergencial” ainda em tramitação, revogar da Constituição os limites mínimos de aplicação de recursos públicos em manutenção e desenvolvimento do ensino e em ações e serviços de saúde. O monstruoso retrocesso foi evitado graças à oposição de inúmeras associações civis, como a Audicon – Associação dos Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas. O novo Fundeb contém diversas inovações, que deverão ser objeto de imediatas iniciativas dos governos federal, estadual e municipais. Neste breve artigo, tratarei de algumas relativas aos municípios, previstas na Lei 14.113/2020, que regulamentou os dispositivos constitucionais do novo Fundeb. Uma das principais obrigações previstas é a instituição de Conselhos de Acompanhamento e de Controle Social do Fundeb por lei específica de cada município, observados diversos requisitos e facultada a integração do Conselho do Fundo ao Conselho Municipal de Educação como câmara setorial com competência deliberativa e terminativa. Os novos conselhos devem ser instituídos no prazo de noventa dias da vigência dos Fundos. As novas regras de repartição de recursos serão aplicadas a partir de abril de 2021 e os saldos dos recursos dos Fundos anteriormente instituídos, existentes em contas-correntes mantidas em instituição financeira diversa do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, devem ser integralmente transferidos para as contas únicas e específicas mantidas em uma dessas instituições financeiras. As normas para utilização dos recursos e as vedações no seu emprego estão previstas nos artigos 25 a 28 da Lei nº 14.113/2020 e serão objeto de fiscalização e controle pelos Tribunais de Contas, pelos órgãos de controle interno e pelos respectivos conselhos de acompanhamento e controle social. A verificação do cumprimento dos percentuais constitucionais de aplicação dos recursos do Fundeb em ações de manutenção e de desenvolvimento do ensino será realizada por meio de registro bimestral das informações em sistema de informações sobre orçamentos públicos em educação, mantido pelo Ministério da Educação, devendo o registro das informações ser efetuado no prazo de até trinta dias após o encerramento de cada bimestre, sob pena de suspensão das transferências voluntárias e da contratação de operações de crédito, exceto as destinadas ao refinanciamento do principal atualizado da dívida mobiliária, até que a situação seja regularizada. Ademais, o artigo 51 da Lei determina a implantação de planos de carreira e remuneração dos profissionais da educação básica naqueles municípios que ainda não disponham de tais planos. Como se vê, há um conjunto de providências urgentes e de grande relevância social que devem merecer a atuação prioritária dos gestores municipais. É nossa esperança que o novo Fundeb, gerido com sobriedade e inteligência, represente um marco decisivo e positivo para a educação no Brasil.   Luiz Henrique Lima é Auditor Substituto de Conselheiro do TCE-MT.    

O que é o “Pacto Federativo”? – por Luiz Henrique Lima

Entre as 35 “prioridades” elencadas pelo Poder Executivo na abertura da sessão legislativa de 2021 está a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional – PEC 188. Posteriormente, nas negociações envolvendo o pagamento de novas parcelas do auxílio emergencial, essa aprovação tem sido a contrapartida exigida pelo governo. Mas, afinal, o que é essa PEC 188? A proposição foi apresentada em 2019 pelo Líder do governo no Senado e recebeu a alcunha de “Pacto Federativo”. Na realidade, a iniciativa representa uma ampla revisão de dispositivos constitucionais, com múltiplos impactos para a administração pública, nos aspectos orçamentários e de gestão fiscal, bem como no financiamento das políticas públicas de saúde e de educação. De fato, cuida-se da alteração de 24 diferentes artigos da Carta Magna, de 6 no Ato das Disposições Transitórias, bem como a inclusão de 5 novos artigos na Constituição e de outros 4 na sua parte transitória. Além disso, intenta-se revogar 16 dispositivos constitucionais, bem como o artigo da LC 141/2012, que fixa valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União em ações e serviços públicos de saúde; e, ainda, a íntegra da Lei 12.858/2013, que dispõe sobre a destinação para as áreas de educação e saúde de parcela da participação no resultado ou da compensação financeira pela exploração de petróleo e gás natural. Por fim, propõe-se também a extinção do Fundo Social instituído pela Lei 12.351/2010, cuja finalidade é constituir fonte de recursos para programas e projetos nas áreas de combate à pobreza e de desenvolvimento da educação, cultura, esporte, saúde pública, ciência e tecnologia, meio ambiente e mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Há fundados receios de que tais alterações possam comprometer o financiamento das políticas sociais, notadamente a educação e a saúde públicas, que seriam privadas da garantia constitucional de um patamar mínimo de recursos necessários à sua manutenção e expansão. Naturalmente, uma mudança de tal porte não pode ser examinada a contento nos limites estreitos deste artigo. Todavia, pode ser útil chamar a atenção para alguns aspectos que considero merecer um debate aprofundado e cuidadoso, para que o resultado alcançado não frustre as supostas boas intenções dos propositores e represente um retrocesso, tanto social como gerencial, para a administração pública brasileira. No plano orçamentário, a PEC 188 extingue os planos plurianuais como instrumento de planejamento de médio prazo nas esferas federal, estadual e municipal e institui leis orçamentárias plurianuais, sem definir para quantos exercícios. Trata-se de uma mudança profunda, cujos impactos devem ser bem analisados, sob pena de desorganizar o que hoje funciona no planejamento e na gestão orçamentária. Não se explica, por exemplo, como compatibilizar a gestão plurianual do orçamento com os dispositivos que preveem a prestação anual de contas e a sua análise pelos Tribunais de Contas e o julgamento pelo Legislativo. No momento em que o país sequer tem o orçamento de 2021 aprovado, não se afigura sensato promover às pressas essa transformação radical. Ao Tribunal de Contas da União – TCU é atribuída a competência de consolidar a interpretação de leis complementares sobre finanças públicas, orçamentos, dívida pública e fiscalização financeira da administração, mediante orientações normativas com caráter vinculante para todos os demais órgãos de controle externo. Atribui-se também ao TCU o poder de anular decisões de outros TCs que entender divergentes do seu entendimento e avocar para si as decisões que não forem alteradas no prazo que determinar.  São propostas que merecem debate, porém no meu entender num contexto muito mais amplo de redesenho do sistema de controle externo brasileiro, de modo a torná-lo efetivamente um sistema com excelência técnica. Em suma, o chamado Pacto Federativo embute um significativo Impacto Centralizador e o seu debate não deveria ser sufocado na correria pelo auxílio emergencial.   Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT.    

ATENÇÃO! A LRF MUDOU, por Luiz Henrique Lima

O início de 2021 traz inúmeras modificações na área do Direito Público. Por um lado, a nova lei de licitações foi aprovada pelo Congresso Nacional e aguarda sanção pelo Poder Executivo. De outra parte, as Leis Complementares 177 e 178 alteraram nada menos que vinte e um dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, a principal norma que disciplina as finanças públicas no Nrasil. Tais mudanças se somam àquelas promovidas pela Lei Complementar 173, de 2020, que instituiu o Plano Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus e modificou a LRF, em alguns casos de forma transitória, durante a vigência da emergência na saúde pública, em outros de forma permanente. Dessa forma, tanto os novos gestores municipais como todos os que atuam ou interagem com a administração pública em todas as esferas devem começar o ano estudando essas alterações e seus impactos para a gestão orçamentária, financeira, contábil, patrimonial e operacional do setor público. No presente artigo, delinearei brevemente apenas o que considero mais relevante nas mudanças da LRF: os dispositivos relativos às despesas com pessoal e a tentativa de uniformização na interpretação jurisprudencial dos conceitos que visam estabelecer limites e condições para o equilíbrio e a sustentabilidade na gestão fiscal dos entes públicos. Conforme já destacado em inúmeros estudos, um dos principais obstáculos à implantação de uma efetiva cultura de responsabilidade e responsabilização fiscal no país foi a interpretação errática e, em certos casos, leniente que alguns órgãos de controle conferiram a conceitos basilares da LRF, a exemplo do cálculo das despesas totais com pessoal e a sua relação com a receita corrente líquida. Estudos acadêmicos registraram decisões em que criativos contorcionismos excluíam ou incluíam determinadas parcelas nas fórmulas de cálculo de modo a assegurar um resultado formalmente aceitável mesmo quando a situação real das finanças públicas era bastante crítica. A LC 178 enfrentou o tema de dois modos. Primeiro, estabelecendo que, na fiscalização do cumprimento da LRF, o Poder Legislativo, os Tribunais de Contas – TCs e os órgãos de controle interno deverão considerar as normas de padronização metodológica editadas pelo Conselho de Gestão Fiscal. Há aqui, porém, duas objeções. De um lado, o referido Conselho, previsto desde 2000, nunca foi instalado e sequer regulamentado. Depois, é bastante provável que seja questionada a constitucionalidade desse dispositivo (alteração do art. 59 da LRF) sob o argumento de ferir competências decisórias dos TCs e/ou o princípio federativo. Em outra vertente, a LC 178 buscou robustecer a definição desses conceitos de maneira a reduzir a margem interpretativa de gestores e controladores. Assim, estabeleceu-se que para a apuração da despesa total com pessoal será observada a remuneração bruta do servidor, vedando deduções como a das parcelas do Imposto de Renda Retido na Fonte. Ademais, na verificação do atendimento dos limites com despesas com pessoal, ficou vedada a dedução da parcela custeada com recursos aportados para a cobertura do déficit financeiro dos regimes de previdência. Outra alteração relevante é a de que os diversos Poderes e órgãos deverão apurar, de forma segregada para aplicação dos seus limites próprios, a integralidade das despesas com pessoal dos respectivos servidores inativos e pensionistas, mesmo que o custeio dessas despesas esteja a cargo de outro Poder ou órgão. Foi também concedido um prazo de dez anos, a partir de 2023, para o retorno ao limite dos Poderes e órgãos que estiverem com excesso de despesas com pessoal ao final de 2021, após o qual, sujeitar-se-ão a sanções. Estudar todos os dias, aprender sempre. Esse é o lema que há anos procuro transmitir aos meus alunos. Mais do que uma satisfação intelectual, aplicá-lo é hoje uma necessidade premente para todos que desejam entender ou participar da gestão pública e as profundas mudanças na LRF e nas licitações e contratos são mais um exemplo.   Luiz Henrique Lima é Conselheiro Substituto do TCE-MT.